Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, já havia escrito e publicado dois títulos infantis — Minha vida de goleiro e Em busca do thesouro da juventude — antes de aventurar-se pelas trilhas da ficção para adultos. Quando estreou na literatura, em 1999, começava a escrever o primeiro dos contos de Discurso sobre o capim. Ele acabou no lixo. De lá para cá, vários outros foram escritos, reescritos, abandonados. Passaram-se seis anos de indecisão e relutância. Schwarcz diz que só topou “publicar-se” graças ao apoio e à persistência de vários amigos e familiares. O livro traz 11 contos que misturam memória, devaneio e ficção. É sobre esta última, aliás, a questão que rege a obra: de onde ela vem, e como se manifesta? Nesta entrevista ao Rascunho, Schwarcz fala sobre a matéria-prima de seus textos, sobre seu caráter autobiográfico e a timidez de seus personagens. Também comentou como anda o mercado editorial brasileiro.
• A última frase de Discurso sobre o capim revela muito de seu caráter autobiográfico. Até que ponto são suas as fantasias e reflexões a que se entregam seus personagens?
É difícil dizer o que é autobiográfico ou não em um livro. De fato, dois contos, Sétimo andar e Acapulco, assim como Livro de memórias, são mais estruturalmente autobiográficos, mas uma das questões que espero ter levantado no livro, principalmente no último conto, é esta: dá para dizer de onde vem a ficção? Ela surge do inesperado, ou em um lugar impróprio, é como um capim que brota fora do lugar. E aí eu me pergunto: será que os contos que mencionei são mais autobiográficos por trazerem alguns eventos da minha vida ou infância? Será que a vendedora de donuts, o cinéfilo fanático por Truffaut (também meu cineasta predileto) que não consegue escrever seu próprio roteiro, a jovem aluna de letras, ou a lavadeira que caminha sob o vulcão, será que eles são menos meus do que eu próprio? Quis colocar essa dúvida através dos contos. Não sei se consegui.
• E sobre o menino tímido de Sétimo andar, observador de um mundo real (o campinho de futebol) onde outros meninos (os “do cortiço”) brincam? Sua capacidade de observação é o resultado de um distanciamento forçado, do medo de se aproximar e interagir com os outros. É desse mal que sofre o escritor?
Não existe, em minha opinião, um só mal que aflige os escritores. Esse pode ser um deles. Certamente é o meu.
• A estudante de A biblioteca opta pela literatura como meio de subsistência e enfrenta um problema clássico: as letras parecem opor-se ao mundo dos negócios, representado por seu pai inculto. Como editor de sucesso, o que a experiência lhe ensinou sobre a relação entre livros e dinheiro? É possível harmonizá-la?
A aluna de letras e seu pai iletrado funcionam para mim mais como uma das dicotomias que o livro procura apresentar, e elas sempre sugerem um mundo onde há os de fora e os de dentro. Como no primeiro conto (Sétimo andar) o menino tímido e assustado não participa do mundo da rua, no conto A biblioteca sugere-se o que virá a seguir no livro, e que será ressaltado em A quinta parede: pode-se viver no mundo da literatura e fora deste mundo, dentro de outro, o do dinheiro, que você menciona. Ou dentro da literatura e do cinema, mas fora da vida social que o personagem de A quinta parede evita, a todo custo. No livro todo, de uma forma ou de outra, pode se encontrar a questão da exclusão, os personagens falam pouco, sonham mais, imaginam, mas em geral são tímidos, precisam de um escritor para existir, como diz o narrador de A quinta parede. A harmonia entre mundos de regras distintas, o mundo das letras e o do dinheiro, pode ocorrer. A biblioteca tem um final feliz, mas essa mesma harmonia pode ser muito problemática, em muitos casos, como a vida real nos ensina.
• Em muitos de seus contos, nota-se uma preocupação velada em relação à falta de comunicação entre as classes sociais. Em Palavras cruzadas, especialmente, as diferenças de interesse entre o cinéfilo e a balconista são evidentes. Algo parecido acontece em Empreendimento de alto padrão, Almas gêmeas e Doutor. Essas distâncias são uma preocupação sua?
Sem dúvida. O único personagem que está integrado na sociedade, que é bem-sucedido, é o do último conto, Livro de memórias. Como espero ter indicado, ele pode ser o narrador de todos os contos, um homem que não consegue escrever suas próprias memórias, laudatórias, como seus amigos fizeram, ou pagaram para ghost writers fazerem; ao pensar nelas, ele apenas se lembra de fatos menores, de tropeços. Na última frase do livro (acho melhor não revelá-la aqui) ele pode estar dizendo: as memórias de pessoas excluídas são minhas memórias, através desse livro. Acho que essa foi a minha forma de mostrar como as distâncias sociais me preocupam. Como escritor, não encontrei uma forma melhor para fazê-lo; um ensaio mais profundo ou a literatura de denúncia social nunca serão os meus meios para tal, por incapacidade ou por estilo.
• Em A quinta parede, outro personagem, isolado, observa o mundo e fantasia sobre ele do alto de seu apartamento, a exemplo do que faz o menino de Sétimo andar. A idéia da torre (observação, distância e devaneio) está presente em várias de suas narrativas. Em Acapulco, outro menino tem no penhasco de La Quebrada um símbolo de sua ligação com o pai. A capa de seu livro traz uma foto do lugar. Por que tantas referências à altura?
Não havia pensado nisso, mas é interessante. A altura pode sugerir devaneio, penso agora, através da sua pergunta. Meus personagens devaneiam o tempo todo, não dialogam quase nunca. Mas não pensei nisso ao escrever. Acho interessante, no entanto, a inversão entre o menino na altura da janela do sétimo andar, e, em outro conto, o menino imaginando o pai saltando de La Quebrada. O menino que está no alto tem medo de descer. O outro imagina o pai heroicamente dando um salto de um penhasco. E eu me senti assim publicando um livro de literatura, próprio. Por isso a capa escolhida foi essa.
• Em suas histórias, o cinema e a tevê desempenham funções relevantes na formação do imaginário de seus personagens. Muitas vezes, até o real é regido por lembranças cinematográficas ou televisivas. Esses veículos assumiram algumas das funções formativas da literatura? Foram os melhores contadores de histórias do século 20?
A tevê e o cinema são bons contadores de histórias. Por sorte ainda não são os únicos meios para isso, se não nem eu nem você existiríamos, o Rascunho e a Companhia das Letras seriam lembrados como coisas do passado, e meus personagens — que não levam pinta para telenovelas, minisséries, thrillers hollywoodianos — estariam condenados a um silêncio ainda mais radical.
• Como você deixou claro no livro, saber cortar é mais do que necessário ao escritor. Sendo assim, sua experiência como editor ajudou ou atrapalhou sua escrita? É essencial cultivar um excesso de autocrítica?
Ajudou e atrapalhou. Bloqueou-me bastante, mas, afinal, acho que precisava de todo aquele tempo para amadurecer, e os contos saíram mais bem cortados do que em suas primeiras versões, espero. Não recomendo o excesso de autocrítica para ninguém. Mas a autocrítica, sem excessos, não faz mal nenhum.
• Devido à sua posição no mercado editorial, você teme que seu livro seja recebido com falsas críticas positivas — no caso de eventuais bajuladores de plantão — ou com resenhas azedas e preconceituosas? É difícil conciliar seu cargo com a sua vocação literária?
Sim, eu temo, mas o que posso fazer? Tenho que aceitar as críticas que vierem, e torcer para que sejam isentas, para o bem ou para o mal. E preciso, como escritor que publica um primeiro livro, de críticas bem-feitas, para poder prosseguir, melhorar.
• Como observador privilegiado do mercado editorial, o que melhorou no Brasil dos anos 80 para cá? A Companhia das Letras cumpriu sua missão? Formou mais e melhores leitores? Fomentou a produção? O que falta melhorar?
Muitos livros que publicamos recentemente nos mostram que podemos melhorar como editores. Os leitores melhoram a cada livro lido. E os editores têm que acompanhar essa melhora no padrão dos leitores, que, no Brasil, é até mais acentuada que nos outros países. Somos um país jovem, muitos já disseram. Os jovens evoluem. Essa é uma das virtudes da juventude, ou não?
• Qual é o elemento mais nocivo para a literatura brasileira, em termos artísticos e comerciais? E o que pode ser feito para melhorá-la?
Não sou fã da literatura de auto-ajuda, por exemplo, ou de cunho espiritual, pois elas pretendem dar respostas afirmativas, totalitárias talvez, a questões de múltiplas respostas. E esse é um aspecto — que eu não chamaria de maligno, pois o termo é muito forte, mas talvez de pernicioso — que vemos crescer em livros de sucesso hoje em dia. Mas nada pode ser feito para melhorar isso. O público deve escolher o que quer ler, e bons editores e escritores de qualidade devem apresentar alternativas. Jornalistas críticos, sem preconceitos, podem ajudar ao não se curvarem ao sucesso fácil. Mas sempre aceitando os direitos dos leitores: que escolham o que querem ler, com liberdade.
• Você já recebeu bons originais de autores totalmente desconhecidos, de quem não tivesse ou recebesse qualquer referência? É muito difícil encontrar bons e novos escritores no Brasil, perdidos por aí?
Sim, foram poucos os casos, mas já publicamos originais que chegaram pelo correio, como aconteceu com os livros de José Roberto Torero, Marcelo Duarte e alguns da Letrinhas. Descobrir novos talentos é a principal tarefa de um editor, e não é fácil. Se fosse…