Na própria carne

Com “Discurso sobre o capim”, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, estréia na ficção adulta
Luiz Schwarcz: observação e introspecção.
01/11/2005

De onde vem a matéria a ser moldada pelo ficcionista, transformada em obra autoral, nova, em algo que nos compense a perda de algumas horas de vida real? Dizia Cioran que as principais fontes do escritor são as suas vergonhas, e que, caso ele não as descubra, revire e exponha ao público, estará para sempre condenado ao mais estéril dos plágios. Faz sentido, se acreditarmos que a obscuridade de nossas motivações pessoais é o que mais nos torna autênticos, o que nos diferencia como indivíduos pensantes, únicos. Para ser profundo e original, bastaria ao escritor que se deixasse invadir por suas taras, que se abandonasse a suas obsessões mais particulares e, contraditoriamente, a seus medos menos publicáveis.

Seguindo esse raciocínio, o breve volume de contos Discurso sobre o capim, que marca a estréia de Luiz Schwarcz na literatura adulta, já parte de um acerto. O autor, também editor da Companhia das Letras, compôs um livro em que bem se misturam devaneio, rigor, imaginação, memória e observação arguta — esta última aprimorada, em parte, devido a uma dificuldade confessa de interação entre Schwarcz e o seu/nosso mundo. De fato, seu alter ego introvertido se faz presente em diversos trechos e personagens da obra, perigosamente exposto ao julgamento do leitor. Em especial nos meninos tímidos, filosóficos e contemplativos que protagonizam Sétimo andar e Acapulco, e no homem de negócios bem-sucedido e autocrítico de Livro de memórias, narrativa que, encerrando Discurso sobre o capim, concede a todo o conjunto um tom conceitual.

A última frase do livro, aliás — que Schwarcz, temeroso de prejudicar-lhe o entendimento geral, prefere que não seja publicada aqui —, é bastante reveladora. Na impossibilidade de citá-la, que se resuma o conto a que pertence: Livro de memórias é narrado em primeira pessoa por um grande empresário que, prestes a receber o prêmio de Homem do Ano, prepara-se para falar a uma platéia ordinária, falsa ou meramente apática. Durante os minutos que precedem seu discurso de agradecimento, o homenageado divaga sobre sua lenda pessoal, ironizando a própria imagem de sucesso e questionando o valor que a sociedade atribui à sua e a outras carreiras semelhantes:

Todos os meus amigos escreveram suas memórias. Escreveram ou pagaram para outras pessoas escreverem. Muitos não tinham nada para contar, as tais memórias foram criadas por escritores profissionais, com imaginação suficiente para fabricar tais dramas, travestir fatos comuns em eventos edificantes, transformar o cotidiano em exemplo para gerações futuras. Um dinheiro bem gasto na invenção da própria história, que meus amigos passaram a repetir em festas, congressos e encontros sociais como se sua vida tivesse sido sempre aquela.

A partir daí, o personagem de Schwarcz, que julga e lamenta não haver fato heróico ou memorável em sua trajetória, passa a fantasiar — com uma mentalidade de editor literário, ressalte-se — sobre como gostaria de registrar sua vida de maneira atraente à apreciação de eventuais leitores. Mas qualquer exegese desse conto — e, conseqüentemente, do livro todo — torna-se mais interessante quando se conhece um pouco da história de sua composição. Ao iniciar Livro de memórias, Luiz Schwarcz pretendia fazer dele um romance. O texto já ultrapassava uma centena de páginas quando, vítima dos cortes de um autor/editor perfeccionista, aos poucos foi sendo alijado de seu sobrepeso. Acabou com seis. Obcecado pela frase enxuta e pela elegância da linguagem, e inseguro acerca da qualidade de sua produção, Schwarcz fez o mesmo com o restante de seu trabalho: podou, dilapidou, reescreveu, eliminou. Tanto que, após seis anos de escrita, sobreviveram ao massacre 11 contos, quase todos curtos, e pouco mais de cem páginas.

Longe de configurar-se defeituoso, tal frenesi pelo corte foi benéfico para a obra de Schwarcz, que resultou limpa e correta, de uma clareza essencial àqueles que privilegiam a introspecção de seus personagens, em detrimento da ação em suas narrativas. Princípio básico. Afinal, como já afirmava Schopenhauer, quem escreve de forma negligente e afobada demonstra somente não valorizar seus próprios pensamentos.

Dono de outras memórias
Luiz Schwarcz, no entanto, diz que o Homem do Ano de Livro de memórias pode ser, também, o dono de outras memórias, não apenas daquelas que se ajustam ao seu perfil (ou estereótipo) mais evidente: o de empresário rico e cético. Essa afirmação faz a leitura de Discurso sobre o capim mais instigante. Porque no livro há, também, personagens pobres, ignorantes e socialmente deletados. Mas como se daria essa conexão entre as muitas memórias do autor, de seu personagem bem-sucedido e de seus tipos absolutamente excluídos, privados da possibilidade de, um dia, verem-se à frente de uma multidão a quem proferir um discurso de agradecimento?

(Apenas como curiosidade, note-se aqui que, ao fim da obra de Luiz Schwarcz, quatro páginas depois de Livro de memórias, há um texto de agradecimento aos vários amigos, familiares e colegas — Rubem Fonseca, Milton Hatoum, Chico Buarque, Alberto Manguel, Tomás Eloy Martínez e outros tantos — que incentivaram o escritor relutante a publicar Discurso sobre o capim.)

Para compreender a questão, é preciso conhecer a galeria de personagens criados por Schwarcz. Há os já citados meninos de Sétimo andar e Acapulco. O primeiro, do alto de seu apartamento de luxo, observa a rua e o mundo real ao qual, por medo e vergonha, não consegue se integrar; o segundo reconstrói suas descobertas infantis criando analogias entre sua vida e os filmes de Tarzan estrelados por Johnny Weissmuller. Em ambos os contos, há inúmeras referências à influência da tevê e do cinema sobre a geração do autor, hoje na faixa dos 50 anos.

Em A biblioteca, uma moça rica decide estudar Letras, e seu pai, um empresário iletrado, lhe dá dinheiro para que compre os cem melhores livros já escritos. Vulcão mostra o dia-a-dia de uma lavadeira que se habitua a viver à sombra do perigo e da incerteza. Palavras cruzadas retrata o início do improvável relacionamento entre um cinéfilo fanático por Truffaut e uma vendedora de donuts, conto que revela a preocupação de Schwarcz com as diferenças de interesse e as imperfeições de comunicação entre as classes sociais brasileiras. O mesmo vale para Empreendimento de alto padrão, que trata da rotina de uma moça simplória que distribui panfletos imobiliários a motoristas parados no sinal vermelho.

Ainda sobre o assunto, em Almas gêmeas, uma camareira em Cozumel tenta se comunicar com os hóspedes do hotel onde trabalha por meio de sua arte: esculpir em lençóis. Ao mesmo tempo, em São Paulo, um garçom esculpe em guardanapos de pano, o que lhe rende o irônico apelido de Canova (referência ao italiano Antonio Canova, expoente da escultura neoclássica, morto em 1822). Outra alcunha serve para elevar ilusoriamente o status de um homem modesto em Doutor, título dado a um encanador cuja especialidade é auscultar canos de esgoto entupidos.

A quinta parede retoma o tema da introspecção: um fã de cinema e literatura, avesso a qualquer contato social, isola-se em seu apartamento e devaneia livremente. Em O lado esquerdo da cama, um homem, solitário, aludindo ao mito de Orfeu e Eurídice, relembra antigas conquistas amorosas. Por fim, temos ainda o empresário de Livro de memórias.

E o que une toda essa gente? Sem dúvida, o que todos têm em comum é a capacidade para a digressão e para a imersão no plano das memórias, individuais ou coletivas. Outra imagem freqüente no livro é a da torre — símbolo que, nele, surge sob vários “disfarces”: há apartamentos, prédios, um vulcão e, em Acapulco — talvez o melhor dos 11 contos —, o penhasco mexicano de La Quebrada, que ilustra a capa do volume.

De negativo em Discurso sobre o capim, resta apenas uma certa ingenuidade narrativa, notável nos momentos em que o autor se refere a grandes obras da literatura ou do cinema, descrevendo-as sem citar seus títulos: “o épico de uma viagem de volta à Grécia”, “o romance sobre o assassinato de uma velhinha”, “um livro composto de supostas cartas de Marco Pólo para Gêngis Khan”, “o filme daquele fotógrafo de perna quebrada” e por aí vai. Ao fazer isso, Schwarcz parece convidar o leitor a participar de algum jogo de adivinhação para iniciados. Várias vezes repetido, o recurso, apesar de lúdico e inofensivo, incomoda. Mas tal problema não é grave — mesmo somado ao excesso de insegurança do contista — e acaba vencido pelo cuidado e pela obstinação com que Luiz Schwarcz assina sua estréia.

LEIA ENTREVISTA COM LUIZ SCHWARCZ

Discurso sobre o capim
Luiz Schwarcz
Companhia das Letras
115 págs.
Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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