A vaca e o nirvana

O encontro com um idoso massagista nas ruas da cidade indiana de Khajuraho mostra um pouco o que é o Brasil
Ilustração: Bruno Schier
01/05/2024

Se excetuarmos os diplomatas, devo ser das poucas criaturas que visitou a Índia mais de uma vez. A explicação está na mãe de um dos meus filhos. Ela estudou yoga na cidade de Khajuraho e a acompanhei algumas vezes por andanças pelo sul da Ásia.

Escrevo esta crônica mais no intuito de relembrar a minha passagem por lá do que propriamente para fazer literatura de viagem — se é que faço.

Dizem que a primeira imagem que se vê numa localidade para onde nunca se foi é o que ficará nas retinas. Pois, para mim, foi uma vaca. Estava deitada na frente do ônibus que me levaria do aeroporto ao hotel, ruminando com a calma dos beatos.

Passaram-se muitos minutos e nada do coletivo se mexer. Fui então perguntar ao impassível motorista o que acontecia. “Não podemos tocar na vaca” — me explicou o sikh de longas barbas.

Ficamos mais de meia hora estacionados na calçada. Até o bovino decidir se erguer e ir pastar em outra freguesia.

A situação resume a Índia. Há certas peculiaridades como essa que não acontecem em nenhuma parte do planeta, somente nos domínios de Gandhi (apesar de que o gado também incomoda no Brasil).

No dia seguinte, depois de me refazer do jet lag, decidi começar de leve nos passeios. Simplesmente, atravessei a avenida e fui observar o que acontecia numa enorme praça defronte ao hotel.

Havia de tudo no pedaço: barbeiros, músicos, vendedores de chá, lassi (suco à base de iogurte e frutas), pão naan. Também havia um sem-número de pedintes, açougueiros e massagistas. Foi um deles que passou a me seguir, o tempo todo, berrando:

— Massage, massage, massage!

Diante de tamanha insistência, acabei topando a oferta. Antes de iniciar os trabalhos manuais, o homem quis saber minha nacionalidade. Ao revelar que era brasileiro, seus olhos brilharam de felicidade. Cheguei a pensar que, como alguns dos seus compatriotas, me perguntaria sobre Paulo Coelho ou Gisele Bündchen. Porém, me falou, emocionado:

— Sir, há muitos anos guardo os comentários de um brasileiro em meu livro de visitas. Mas está em sua língua e aqui ninguém conhece o português. Poderia traduzir para mim o que ele escreveu? Por favor! Tenho muita curiosidade…

Ao proferir tais palavras, me jogou nas mãos um enorme e ensebado caderno de capa dura e preta. Transido de emoção, abriu na página em que meu conterrâneo deixara as opiniões sobre os seus serviços.

— Please, sir, translate, translate! — implorava o velho indiano, as mãos trêmulas.

Um certo Rodrigo P., do Rio de Janeiro, redigira as seguintes linhas: “Cara, a massagem desse indiano é uma merda”.

A observação resume o Brasil.

O idoso massagista me olhava com enorme curiosidade, como se eu fosse revelar algum segredo do deus Shiva. Depois de pensar um pouco, fingindo estar com uma certa dificuldade em entender a frase, resolvi lhe dizer:

— Parabéns! O senhor Rodrigo, da cidade do Rio de Janeiro, anotou o seguinte no seu caderno:

“Meus amigos, a massagem desse homem sábio me levou ao Nirvana, foi a coisa mais sensacional na minha viagem à Índia”.

O indiano não cabia em si. Apontou para os garranchos do carioca, querendo mais detalhes sobre cada uma das palavras. Dessa vez, tive que apelar:

— Exatamente: merda, em português, é Nirvana.

Ao ouvir tal revelação, ele saiu correndo pela praça gritando:

— Merda! Merda! Merda!

Aproveitei para me escafeder em direção ao hotel. E, claro, torcendo para que não houvesse nenhuma vaca deitada no meio do caminho.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho