Mamãe
Eudoro Augusto
Pra mim chega.
Seus cães policiais não vão mais farejar meu jardim
nem sacudir as pulgas do meu tapete voador.
Seu arame farpado não vai mais cercar vaca nenhuma.
Nunca mais vou medir os dias nem as pesadas noites
pela batida de um coração que apodrece.
E vê se não esquece
de retirar os corpos as manchas de sangue
os mapas irregulares que me destinam
a um país ocupado.
Chega de tímpanos estourados
chega de perder os dentes.
Vê se dá um basta nesse fodido medo.
As paredes revestidas
o algodão nos ouvidos
nada disso pode isolar o berro
o ruído animal que arrepia pelos e espinha
gravado em cavernas abismos
gargantas.
Chega de carne moída chega de vida engasgada.
Hoje todo o seu povo
vivos e mortos famintos e doidos raivosos
faz as malas abre as veias
e volta pra casa de mamãe.
Outras lutas
Francisco Alvim
Mário Faustino um dia escreveu
que a poesia brasileira
pra mudar
e voltar a ficar boa
precisava — entre outras coisas
de poetas perseguidos pela polícia
Os ômi parece que leram isto
estão de acordo
e grampearam o Nick
Esses dois poemas —Mamãe, de Eudoro Augusto, e Outras lutas, de Francisco Alvim — foram publicados originalmente no mesmo livro, com o título Dia sim dia não, no ano de 1978. Antes, em 1975, Cacaso e Luis Olavo Fontes fizeram algo semelhante, publicando em coautoria o livro Segunda classe. Tais opúsculos da comumente chamada poesia marginal, em geral dados a lume em condições plásticas precárias, financiados do próprio bolso e então vendidos (quando vendidos) a preços bem populares, hoje se tornaram raridade, e só são encontrados (quando são) em sebos virtuais ou mesmo em leilões, a preço de ouro.
A despeito da amizade entre os poetas, espanta o alto grau das afinidades afetivas e estéticas dos 20 poemas de Eudoro e dos 25 de Alvim (menores, sabidamente concisos, elípticos). Em plena ditadura, não espanta, contudo, o constante teor político dos versos, e não há surpresa nisso se recordamos que, comparada a outras artes e mídias de bem maior alcance (tevê, rádio, jornal, música, teatro, cinema e mesmo contos e romances), a poesia teve quase que livre trânsito, com tiragens pequenas, para leitores com frequência esclarecidos quanto à situação política do país, sem incomodar de fato o poder militar estabelecido, desde o golpe de 1964. Com uma ou outra exceção, como sabemos — e veremos.
Em ambos os poemas, os jovens poetas soltam o verbo contra a ditadura, mas sem perder a ternura, afinal o humor se fixou como estilema geracional, sendo um recurso de sedução e leveza (embora, exatamente por isso, seja muitas vezes acusado de leviano e complacente). No poema de Eudoro Augusto, o humor atravessa, com sutileza, o andamento dos versos, que dizem de coisas sérias e pesadas; em Francisco Alvim, o humor paira sobre o insólito de uma comparação entre uma metáfora e uma ação persecutória. Em Lógica do sentido (1974), Gilles Deleuze diz que “o humor é a arte das superfícies e das dobras, das singularidades nômades e do ponto aleatório sempre deslocado”. Noutras palavras, o filósofo francês sugere que o humor se elabora a partir da ruptura de um senso comum, estável, previsível, congelado sob a capa de bom senso. O termo “marginal” pode ser entendido em sua literalidade como aquilo que escapa ao centro, sendo o centro um misto desse tipo de bom senso com o senso comum.
Mamãe
Mamãe tem 24 versos em um só bloco e diz de uma realidade concreta, sem alegorias nem disfarces: cães policiais, arame farpado, pesadas noites, manchas de sangue, país ocupado, tímpanos estourados, perder os dentes, fodido medo, berro, carne moída, vida engasgada, abre as veias. Não há dúvida do efeito nefasto e desumano do regime autoritário, que censurou, amedrontou, prendeu, coagiu, torturou, exilou, sequestrou, assassinou tantos quantos a ele se opuseram. Por cinco vezes o poema afirma: “Chega”! O primeiro verso diz: “Pra mim chega”, e adiante: “Chega de tímpanos estourados”, “chega de perder os dentes”, “Chega de carne moída chega de vida engasgada”. A ausência de pontuação reforça a ausência de estrofes, indicando a intensidade da revolta em um fôlego que não quer se conter (“os corpos as manchas”; “cavernas abismos”).
A ruptura no discurso de revolta (que atrai a pecha tão demonizada de proselitismo, engajamento e panfletarismo) se dá exatamente pela quebra que o humor propicia: os tais cães policiais não vão “sacudir as pulgas do meu tapete voador”, ou seja, não terão capacidade de entender outra ordem (tapete voador) para além do que são treinados (farejar). O próprio primeiro verso — “Pra mim chega” — já antecipa o tom juvenil de contestação, sobretudo quando sucede ao título Mamãe, termo que retorna e surpreende no verso final: depois da denúncia de tanto sofrimento e opressão, o jovem poeta e militante cidadão incorpora a voz de “todo o seu povo” que, entre a rebeldia e o cansaço, “volta pra casa de mamãe”. A expressão conclusiva surpreende, pois a sequência dos versos levava a crer em uma ação radical, de enfrentamento da ditadura, mas o que se depreende é, apesar do tom engraçado, o clima de derrota, se “volta[r] pra casa de mamãe” significa uma espécie de passo atrás; se não for, ainda mais contundente, uma metáfora de retorno ao útero materno (reforçada pelo ambivalente verso: “faz as malas abre as veias”).
Outras lutas
Outras lutas começa citando um talentoso escritor falecido precocemente (Mário Faustino, em 1962, aos 32 anos, em acidente de avião) e finaliza se referindo a outro talentoso escritor naquele momento, em 1978, com apenas 20 anos de idade (Nicolas Behr, o Nick, nasceu em 1958 em Cuiabá, mas há muito tempo tem sua vida e obra identificada com Brasília). Os nove versos em estrofe única parecem, contudo, se dividir em dois blocos: os seis primeiros versos recordam fala espirituosa do ensaísta piauiense, autor de O homem e sua hora (1955), acerca de uma inusitada relação entre qualidade poética e perseguição policial; os três versos restantes recordam o fato de o poeta Nicolas Behr ter sido preso e processado em agosto de 1978 pelo famigerado Dops por supostamente “porte de material pornográfico”, isto é, por seus livros de poemas Grande circular, Caroço de goiaba e Chá com porrada. O fato gerou grande repercussão, tendo o poeta recebido apoios os mais variados, entre os quais uma carta de Carlos Drummond de Andrade.
A alusão a Mário Faustino o poeta Chico Alvim buscou em trecho do contundente ensaio publicado com o título A poesia “concreta” e o momento poético brasileiro, reunido em Poesia-experiência (1977). Após comentar, de modo deveras crítico, as obras de João Cabral, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, a geração de 45 e os “rapazes engagés, marxistas”, conclui que nenhum é satisfatório. Chega, então, à pergunta “de que precisa a poesia brasileira?”, à qual responde com muita seriedade, rara ousadia e iniludível deboche:
Precisa de dinheiro. Precisa de uma estrutura econômica estável como alicerce. Precisa de que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editoras, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que ao mesmo tempo leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia realmente consiga levantar o povo. (Grifo meu)
A sequência do texto de Faustino mantém a verve polêmica e categórica, sugerindo que a “solução” poderia passar por um combinado dos “três Andrades: Mário, Oswald, Carlos — a cultura, a revolução, a boa poesia”. Francisco Alvim recorta da “receita” de Faustino o ingrediente político: estávamos, em 1978, com o general Geisel na presidência, e seu bordão de uma abertura “lenta, gradual e segura” era sobretudo retórica, em que pese, de fato, ter sido bastante lenta e bastante “segura”, pois a ditadura ainda exercia sua desmesurada força repressiva e a redemocratização demorou ainda anos e anos para acontecer. O episódio ocorrido com o poeta — “grampearam o Nick” —, amigo do já diplomata Chico Alvim, faz com que o poema recupere a blague de Faustino quanto à precisão de poetas “perseguidos pela polícia”, e conclua que “Os ômi parece que leram isto”. Decerto, não leram, e o humor provém desse choque: a metáfora (no ensaio de Faustino) de uma poesia de tal monta que incomoda a ordem a ponto de o poeta ser perseguido pela polícia dá lugar a um exemplo literal (no poema de Alvim) de perseguição, que custou ao poeta citado (Nicolas Behr) prisão e meses de processo. O tom bem-humorado e crítico do poema (“voltar a ficar boa”, “Os ômi”, “grampearam o Nick”) parece reverberar boutade do machadiano Conselheiro Aires, diplomata aposentado, para quem a vocação da diplomacia era “descobrir e encobrir”.
Todo o poema de Eudoro Augusto também partilha desse mesmo clima de perseguição e medo de Outras lutas, de Francisco Alvim. E também partilha, do título ao último verso (Mamãe; “e volta pra casa de mamãe”), de um sentimento de que, apesar dos “negros verdes anos” (Cacaso), ou exatamente como uma possível e delicada estratégia de sobrevivência nesses anos de chumbo (ver tag “Humor” em mpac.ufes.br), o humor poderia ser uma forma de fazer pensar sobre o contexto autoritário e truculento por que então atravessava o país. Porque rir, explícita ou sutilmente, não significa concordar com aquilo que produziu o riso. O livro Dia sim dia não sinaliza que há ali, em seu miolo, duas vozes, dois poetas, muitos poemas que, desde o título, sabem que o humor é uma “arte das dobras”, e cabe ao humor dobrar o que é sério, reto, chato, careta, autoritário, policial, violento, persecutório. Dobrar o que não tem graça. Vale até, para reunir as duas obras, voltar pra casa de mamãe em prol de outras lutas.
(em memória de Eudoro Augusto: 16/08/1943 – 28/02/2024.)