Sábado de manhã. Estou em casa, estudando Língua Portuguesa III. A poucos meses de completar cinquenta anos, me dedico finalmente à faculdade de Letras, que eu poderia ter frequentado aos vinte, se… Se, aos vinte, minha mente e coração não estivessem tão atarantados por dúvidas e paixões que no tempo se extinguiram.
Estudo Licenciatura em Letras, o que significa estudar a língua, e também como ensiná-la a crianças e adolescentes. Sou professora há mais de vinte anos, porém nunca ensinei crianças. Provavelmente não o farei, nem mesmo agora, quase licenciada, porque já tenho um emprego, as universidades pagam melhor, etc. etc. Ainda assim, ao me lembrar da gaúcha Lina — professora de português dos meus onze aos catorze anos — fico imaginando…
Uma mulher madura (Lina), em pé diante do quadro-negro, com duas dúzias de pré-adolescentes à sua frente. Sua exigência, a irritação latente, sua paixão pela leitura. Por que essa imagem, das aulas da quinta série, permanece em minha memória? Por quê, com a mesma devoção de há quatro décadas?
O que eu faria hoje se estivesse, como Lina, numa aula de sexto ano?
A língua — eu diria? — a língua, essa maravilha de estar vivo. Como um pássaro que às vezes solta forte seu canto, como um crente que canta a Deus. A língua — essa maravilha humana.
A emoção autêntica do professor às vezes é suficiente para contagiar estudantes. Mas, intensa demais, pode se tornar ridícula. Valeria mesmo usar a analogia batida do pássaro? O que há de verdade nesse velho recurso retórico?
Então me lembro que os pássaros só cantam potentes e felizes nos desenhos da Disney. Na vida real, sabe-se lá dos sentimentos aviários. Felizes? Duvido. Outro dia vi num filme alguém dizer: todos os cantos dos pássaros significam só uma coisa: é-meu, é-meu, é-meu; sai-daqui, sai-daqui, sai-daqui.
Um pássaro canta potente, vem o gavião e o engole. Outra imagem óbvia — de documentário televisivo.
Pássaros orgulhosos são engolidos, assim como nós, numa expansão imprudente de brilho, podemos morrer subitamente. Como os cantores que morrem em desastre de carro ou avião, ao atingirem o auge da carreira artística. Não estariam por aí, em alta velocidade, se não estivessem no auge. Distraídos pela própria vitalidade, batemos cegos nas vidraças do mundo físico.
Meu primo morreu, aos quinze anos, num acidente de moto. O que fazia um garoto de quinze anos numa moto, descendo a serra, em direção ao mar?
Eu tinha treze. A tragédia me atingiu. Até hoje tenho medo de estrada, automóveis, viagens, velocidade. Foi o primeiro funeral que presenciei. No cemitério aberto, minha família paterna em volta do caixão.
Na semana seguinte, na aula de português, escrevi sobre a morte numa redação. Frases curtas. Pouca descrição. Só perguntas: por quê? Por quê? A professora Lina não me elogiou, como das outras vezes. Certamente não sabia o contexto de tanta angústia. Não gostou do estilo, apelativo e melodramático.
A língua — o que conseguimos ou não dizer. A língua — que faz escorrer nossas águas sujas, como um fio amarrado à tampinha do tanque da lavanderia. A língua — que aprendemos a manipular na escola, para um dia liberar na internet ideias cheias de travessões e vírgulas e frases de estranha sintaxe. A língua — esse desafio.