Lembre-se de um livro que lhe proporcionou imagens inesquecíveis. Pense também em uma obra de ficção que, de um jeito ou de outro, mudou, nem que seja minimamente, a sua vida. Imagine ainda um texto que trata de temas que são caros a uma determinada geração e, simultaneamente, dialogam com outros tempos possíveis e outras gerações. E acrescente: tal obra foi construída com perícia, seguindo as regras da arte e, até mesmo, desrespeitando essas supostas regras. E, então, o que parece? Que título lhe vem à mente?
Daniel Galera é um escritor que tem 27 anos e três livros publicados, incluindo o mais recente Mãos de Cavalo. Galera se aventurou pela narrativa breve, em Dentes guardados, pela narrativa mais ou menos longa, em Até o dia em que o cão morreu, e — agora — transita pela longa narrativa, o romance. Mãos de Cavalo é, antes de qualquer pronunciamento, um livro excelente. Nele, Galera problematiza a respeito de um tema permanente para o humano, e demonstra ser um escritor que sabe o que precisa ser feito. Inclusive, o autor supera experiências ficcionais anteriores. Isso significa, entre outras coisas, que o promissor Galera de uns anos atrás confirmou, e superou, previsões. Essa é a prova.
Mãos de Cavalo é um texto ficcional, de 188 páginas, que trata da formação de um indivíduo. O protagonista tem, como um de seus apelidos, aquele que dá título ao livro. Ele surge em capítulos específicos, com nomes variados, de acordo com um determinado período de sua trajetória. Às vezes, ele é o Ciclista Urbano em sua infância. Em outros capítulos, é o Hermano, ou o Mãos de Cavalo, da adolescência. E também é apresentado como o cirurgião plástico em que se transformou ao se tornar adulto. Os três momentos da trajetória — entrecortados, em fragmentos — trazem situações em que ele demonstra, necessária e obrigatoriamente, hesitação diante do porvir. O dilema do personagem é assumir a sua própria natureza. “Insistir em ser outro era desperdiçar energia e gerar frustração, vergonha e arrependimento.” Seja na infância, na adolescência e mesmo na fase adulta, Mãos de Cavalo se encontra no impasse: há desafios sociais, provas à espera de superação e invisíveis placas a sinalizar para a direita, siga à esquerda, agora em frente, depois recue. O ser em permanente conflito não parece ter tempo para aquilo que poderia ser chamado de a escolha mais sensata e, como há estrada, ele segue. Em frente, mas a olhar pelo retrovisor.
A idéia de movimento se destaca em Mãos de Cavalo. Seja pela utilização de verbos que sugerem movimento e mesmo pela condição do personagem nas variadas fases de sua trajetória: ele sempre está em trânsito. O Ciclista Urbano segue, ininterruptamente, a pedalar. Hermano circula, daqui para ali. E o cirurgião plástico, na maior parte da narrativa, dirige seu Mitsubishi Pajero TR4. Isso quer dizer também que, necessariamente, o texto ficcional apresenta movimento, e agilidade — que conduz os leitores pelas páginas do livro. E, simultaneamente, o narrador constrói uma Porto Alegre ficcional por onde esse personagem se desloca. A cidade inventada não contempla espaços turísticos como a Praça da Alfândega, a Rua da Praia, o Parque da Redenção nem a Casa de Cultura Mario Quintana. Em Mãos de Cavalo surge o possível conjunto residencial Esplanada, ao sul de Porto Alegre, cenário da infância e adolescência do protagonista e, ainda, na trajetória do adulto, prováveis ruas porto-alegrenses, como as citadas Carlos Trein Filho, Nilo Peçanha e Carlos Gomes — além do inevitável e onipresente rio-mar Guaíba. Com isso, Galera insere na malha ficcional brasileira a sua Porto Alegre, da mesma forma que um Liberato Vieira da Cunha, um Sergio Napp, um Amilcar Bettega Barbosa e um Sergio Faraco edificaram, individualmente, as suas Porto Alegres. E a cidade ficcional galeriana se encontra com a Porto Alegre real nos momentos em que há recriação da oralidade — tu, bah!, “gaúcho é melhor em tudo” — das ruas da capital gaúcha.
No entanto, é sim a problematização a respeito da busca por uma identidade que se traduz na questão central do livro. O Ciclista Urbano, que na adolescência passou a ser chamado de Hermano, entre outros desejos, ambicionava, mas não conseguia, absorver características, afirmativas, de um personagem próximo. Os ritos de passagem se faziam, mesmo, presentes. Urgentes. Até que veio uma inevitável, mas, relativizando, necessária tragédia. E uma omissão se tornaria combustível de culpa e ecos constantes no futuro. Os fatos, das variadas fases da trajetória, jogam, com sutileza, luzes nas escolhas do personagem central. Assim, o leitor pode vir a compreender, a partir de episódios da adolescência, por que Hermano — o Mãos de Cavalo — optou pela medicina e se tornou um cirurgião plástico. A narrativa apresenta ainda outras chaves que podem fazer com que o leitor venha a abrir portas e compartimentos para desvendar nuances de um personagem insatisfeito com o próprio destino.
Mãos de Cavalo, pela linguagem, pelo ritmo, pelo enredo, pelas descrições, pela dimensão do personagem, enfim, pelo conjunto, é — até este presente — um dos projetos de ficção mais bem realizados no Brasil literário contemporâneo. Galera escreveu, seguramente, a obra mais significativa de sua geração. E, devido ao fato do romance tratar dos impasses da construção de uma identidade, deve reverberar entre os leitores de 20, 30 e até mesmo 40 anos. Aqueles que, na realidade, pedalaram uma Caloi Cross, calçaram kichutes ou tênis M2000, e tiveram o imaginário elaborado pela cultura pop, podem vir a encontrar referências, e identificação, nas páginas desta longa narrativa. No entanto, Mãos de Cavalo diz respeito, não apenas a leitores de 20, 30 e 40 anos, mas a todos os mamíferos bípedes, dotados de polegar opositor, que vivem em um sistema que apresenta obstáculos e desafios diários. Mãos de Cavalo se traduz, ainda, em oportunidade para se refletir sobre a existência.
Mãos de Cavalo é um parâmetro para os demais autores tupiniquins pensarem a respeito do que é, ou pode vir a ser, um romance. Mãos de Cavalo é um marco.