Sou fã do tradutor e humorista Millôr Fernandes, intelectual que deixou traduções das peças de Shakespeare, poemas e máximas deliciosamente ácidas em seu Millôr definitivo – A Bíblia do caos, editado pela gaúcha LP&M. Mas só usei o Millôr pra puxar papo com você, paciente leitor, sobre o livro mais vendido da história. Sim, estou me referindo à Bíblia.
E por que desse título para este texto? Eu perdi a fé na Bíblia, a fé cristã eu já não tinha com muito fervor, confesso, sou um católico não praticante como se diz e dou aquela rezada quando me enfio numa sinuca de bico, numa enrascada. Missa aos domingos? Bem raro, apenas quando temos um compromisso familiar ou de amigos, com respeito, sempre.
Mas a fé a que me refiro ter perdido é a fé na Bíblia como campeã de vendas. E não digo isso achando que mais pessoas são negligentes com o altíssimo, assim como este que vos tecla. Perdi a fé porque não consigo mais vender a Bíblia, e isso se dá há alguns anos.
Será que o religioso leitor pensa que uma punição divina se abateu sobre o livreiro cético? Não descarto a possibilidade. Mas prefiro caminhar sobre as águas do argumento racional.
As primeiras versões do texto sagrado datam do ano 400, e após a era de Gutenberg e da imprensa claro que as tiragens foram crescendo e se multiplicando.
Mas a minha fé perdida se dá no meu balcão na hora que recebo clientes em busca da sua Bíblia.
O roteiro é mais ou menos este, e ele se repete quase que diariamente:
— Olá, o senhor tem Bíblia?
— Tenho, sim. Está aqui a edição da católica, antigo e novo testamento.
— Ah, não quero essa. O senhor teria a de estudos?
— Pena, não tenho…
Noutra ocasião, outro exemplo:
— Olá, o senhor tem Bíblias?
— Tenho essa versão.
— O senhor tem com letras maiores?
Ainda em outra feita:
— Olá, o senhor… — Vocês já sabem…
— Tenho…
— Mas não tem com as letras roxas?
Fiz aquela famosa entrada rápida no Google pra ser menos desinformado do que de costume e perguntei ao oráculo digital quantas versões existem da Bíblia. Apareceram mais de setenta versões que se dividem pelas ramificações religiosas, católicas e protestantes, mas acho que não contabilizam as microalterações sugeridas e criadas pelo mercado editorial, a versão com letras de cores diferentes, letras maiores, letras menores, capa florida, capa clássica, obras que se dedicam aos estudos e por aí vai.
O que posso garantir disso tudo é que não vendemos como antes, e ainda suspeito que se aplica uma lei nada divina na minha rotina, a lei de Murphy, aquela que diz que se algo pode dar errado, ora, vai dar.
Essa lei dos homens não falha, digo e dou fé.
Pronto, confissão concluída. Sigo daqui tentando achar graça nas pequenas observações da vida no balcão.
Obrigado pela preferência, voltem sempre.