Essa prática da prosa, da conversa com estranhos, por exemplo, com um taxista na cidade do Porto, essa prática é por vezes rica, por vezes desanimadora. Por ser o tema destas mal traçadas linhas, penso que essa experiência foi interessante. Vamos a ela.
Estávamos passando dois dias no Porto e logo que chegamos, guardamos o carro alugado num estacionamento público para depois deixarmos a bagagem no hotel. Assim ficamos prontos para encontrar amigos de longa data, marcamos um encontro num restaurante e lá fomos em busca de um táxi. Em poucos instantes, um motorista nos nota e acata o aceno, entramos no carro, disse o destino e toca o bonde, ops, o táxi. Me chamou a atenção um sinal insistente, um bip alto, um alarme que não dava trégua. Olhei de canto de olho: o homem não atou o cinto de segurança e pelo jeito não estava preocupado, mas eu estava. Quando comecei a imaginar se o rapaz era deficiente auditivo, ele interrompe o silêncio e depois disso não parou, ou melhor, não paramos de prosear.
Ele começa: Acho genuíno brasileiros nos visitarem, vocês são ligados a nós, vossa cultura é a mesma, foram colônia. Agora, isto aqui está irreconhecível, são tantos indianos, paquistaneses, que não sei se teremos controle sobre a nossa cidade, nossa cultura. Eu: Sim, mas veja, são situações que o mundo precisa entender, não há retorno, mas entendo que cultivar sua memória, suas tradições, sua arte dará sempre resultado.
Eu: E o senhor gosta de ler? Lê autores portugueses?
Ele: Leio muito.
Eu: Já leu o Rui Zink?
Ele: Este não, é comunista radical. (Eu ri pra dentro, o Rui adorou saber depois sobre a impressão do taxista.) Leu Miguel Sousa Tavares? Ele: Gosto muito. Isabela Figueiredo? Não li.
Ele: Uma boa história para lhe contar, minha primeira professora morou alguns anos no Brasil e o livro que li logo que me alfabetizei foi o Meu pé de laranja lima, foi a minha professora que nos apresentou o livro. Eu: Olha só! José Mauro de Vasconcellos! Ele: Inesquecível!
A partir daí o homem desfiou suas lembranças sobre como era o estudo e os conselhos de sua professora, mas a melhor máxima foi sobre quando perguntei se preferia ler autores contemporâneos ou clássicos. Ele, sem pestanejar, relembra o que a sua professora sugeriu como lema. Para literatura, leia os clássicos, para científicos, leia os novos.
Pensei: é uma frase de efeito, me faz pensar, mas claro que discordo, ainda mais em se tratando de ler cronistas livreiros, puxando a brasa pra sardinha local.
Quando fomos nos aproximando do destino, comecei a pensar também no desfecho da boa prosa, perguntei o seu nome e me preparei para pagar a corrida.
Me chamo Basílio. Obrigado, Basílio, sou o Zé Luiz e sou livreiro no Brasil. Basílio arregalou os olhos brilhantes, me deu um cartão pessoal, pediu para que ficássemos em contato, pois ele sempre tinha sugestões de leituras e tinha uma amiga que também fazia sugestões e a prosa ganhou novo impulso mesmo com a Ana e o Zé Miguel esperando de pá fora do carro no inverno português.
Peguei o cartão, paguei a corrida e, quase me levantando, noto um livro encaixado ao lado do banco, próximo ao câmbio do carro, A náusea, do Sartre. Pedi pra fotografar o livro sem mostrar o seu leitor, ele concordou e já ia dizendo sobre o desafio de ler a obra, que já está na terceira tentativa, desta vez lhe parece com sucesso.
Me despedi do Basílio, um bom leitor, mas um condutor com algumas manias, o sinal do cinto apitou durante todo o trajeto.