A peruca do vampiro

A antiga (mas sempre divertida) polêmica entre José Cândido de Carvalho e Dias Gomes por conta de acusações de plágio
José Cândido de Carvalho, autor de “O coronel e o lobisomem”
06/03/2024

Um dos livros que mais me chamaram atenção no ensino fundamental foi O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho. Agradeço ao velho professor Borges, de Literatura, por ter escolhido tal obra para as leituras e análises da classe. Mais tarde, a minha reverência por Zé Cândido aumentou ainda mais após conhecer Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon. Ler aqueles contos foi pisar num dos terrenos mais férteis do humor brasileiro.

Durante a pandemia, comecei a juntar material para uma matéria na revista Bravo! sobre o escritor fluminense. Pesquisei em várias fontes, uma delas foi a filha de JCC, Laura Lione Carvalho Santos. Gentilmente, ela me enviou uma série de livros e reportagens sobre o pai. Entre as obras, o inacabado Rei Baltazar, editado pela Academia Brasileira de Letras.

Como por vezes costuma acontecer em jornalismo, os editores que me levaram à Bravo! saíram da publicação e eu os acompanhei. Mais uma vez, silêncio sobre Zé Cândido? Não. Apenas uma breve pausa.

Para ajudar a reaquecer o debate sobre esse ilustre filho de Campos dos Goytacazes, divido com o leitor um raro texto a que tive acesso, publicado em 1979, na Revista Nacional.

Por essa época, alegações de plágio surgiram quando foram destacadas semelhanças entre O coronel e o lobisomem e a telenovela O bem amado, de Dias Gomes. JCC sugeriu que expressões únicas suas foram usadas deliberadamente pelo dramaturgo. No programa Sem censura, da TV Educativa, Gomes negou ter lido o romance. E minimizou o caso, chamando-o de “piada”. No entanto, a controvérsia levanta questões sobre o desequilíbrio entre a obscuridade de personagens literários como Ponciano e a popularidade de personagens de novelas como Odorico Paraguaçu.

Fiquem com a réplica do autor de O coronel e o lobisomem e que a polemicice do ocorrido traga luzimento aos dramaturgismos regionais e globais:

 Ao responder a uma pergunta do programa de TV Sem Censura por que O Bem Amado era uma cópia fora de foco ou desbotada de O Coronel e o Lobisomem; o sr. Dias Gomes resolveu sair pelo facilitário dizendo nunca ter lido esse romance fluminense, apesar de suas 40 edições só no Brașil. Em verdade, a pergunta mortal devia ser esta:

Por que o texto do primeiro lançamento de O Bem Amado não confere ou não é o mesmo do O Bem Amado da novela da TV Globo dos anos 70?

Resposta: simplesmente porque em 1960, quando a revista Cláudia publicou a versão original de O Bem Amado, ainda não existia na praça O Coronel e o Lobisomem, que só apareceria quatro anos depois, isto é, em 1964, em um lançamento da Editora O Cruzeiro, repito, o texto número 1 de Dias Gomes ou melhor, O Bem Amado de 1960, bem poderia ter sido escrito pelo Conselheiro Acácio ou pelo Pacheco de Eça de Queiroz: é um melancólico depósito de lugares comuns, sem brilho e sem centelha, como tudo que faz o dito Gomes quando não usa muletas alheias. Tão desimportante e chato que o produtor Pedro Rovai recusou, na época, transformar a peça em uma de suas vitoriosas realizações teatrais. O Odorico, de O Bem Amado, de 1960, não passava de um bacharel falando certinho, colocando bem os pronomes e as crases, sem nada do tonitruante Odorico Paraguassu da novela da TV Globo dos anos 70, surpreendentemente transformado em coronel de patente e interpretado pelo ator Paulo Gracindo, que aparece montando uma série infindável de ismos e outros achados linguísticos vampirizados de O Coronel e o Lobisomem.

É claro que Dias Gomes não leu meu livro — simplesmente sugou a obra como um Drácula de terreno baldio, com a suprema vantagem de não pagar pedágio nem direitos de trânsito ao verdadeiro inventor dessa linguagem, no meu caso barroca e no caso do Dias Gomes, rococó. Outra flibusteiragem desse astuto carpinteiro teatral: O título da peça foi surrupiado de um velho e esquecido romance inglês do século XIX, magnificamente traduzido para o português pelo poeta esplêndido escritor Xavier Placer em 1943, com o título de O Bem Amado Amado ou A Bem Amada, não me lembro bem.

Em síntese, tirantemente o que não é seu, o sr. Dias Gomes fica reduzido a nada. Ou melhor, a um vampiro de peruca.

Em tempo: em julho de 1998, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria, de Rafael Vogt Maia Rosa, na qual se afirmava que estava por sair uma biografia de Zé Cândido, de autoria de Lourdes May. Seria lançado pela editora carioca Revan. Entrei em contato com a empresa, mas não obtive retorno até a entrega desta crônica. A biografia não está entre os livros comercializados no site da Revan.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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