Clarice e o Nada

As muitas possibilidades e os muitos caminhos que se bifurcam vida afora
Ilustração: Eduardo Mussi
01/03/2024

Anos atrás, deprimida, eu me consultava com um psiquiatra paternal e afetuoso. No consultório, na rua Augusta, não me ocorria nada a dizer. Em silêncio, na poltrona, ouvia os sons que vinham pela janela. Atrás do prédio um estacionamento, um espaço vazio. Os ruídos me acalmavam.

Já morei em apartamentos próximos a grandes avenidas. Um ruído de fundo constante, como um tremor da terra, atravessava as noites, como se ônibus e caminhões fluíssem pela via continuamente. Um ruído fantasma, talvez impregnado no asfalto — porque, sabemos, no coração da noite os carros escasseiam.

Um outro prédio, na rota de um ônibus de bairro: a cada trinta minutos, o motor Mercedes Benz trocando de marcha na subida. Quem está em casa, ouve. Durante o dia, de meias e moletom, fico ao computador. Meu sobrinho adolescente, quando morava aqui, perguntava: “Que trabalho é esse, o dia inteiro aí?”. Pra ele, o computador era distração: videogame e youtubers verborrágicos. Organizar arquivos no disco rígido não fazia parte de sua experiência.

Embora saiba, raramente cozinho. Sei limpar casa, mas chamo a diarista. Ela vende suas horas para lares alheios, assim como vendo as minhas para formar filhos de famílias que desejam diplomar seus descendentes. Se eu vendesse menos horas, e passasse eu mesma o aspirador de pó, minha vida seria mais tranquila? É a pergunta que sempre me faço. Se pudesse puxar o freio da máquina social.

Minha avó fez apenas um ano de escola rural. A professora tinha os braços brancos: não trabalhava na terra, debaixo do sol. O sonho de minha avó era morar na capital, no centro. Que as filhas estudassem: “para lavar louça, já basta eu”.

Num outro tempo e lugar, se vivesse em fazendas, agricultora sem posse da terra, o que eu faria? Cozinhar, lavar, limpar. E antes disso, num grupo nômade, atravessando a terra despovoada? Eu descascaria pinhas, teceria cestas, trançaria os cabelos das minhas crianças? E se a luz acabasse, e secassem as plantas do solo? Eu esperaria resignada que meus olhos fechassem para sempre. A aflição talvez seja uma fantasia dos inquietos.

No bairro onde vivo hoje, há pardais e maritacas, cachorros, um pedreiro consertando a calçada, um vendedor de pães que passa de motocarro no fim da tarde, tocando uma matraca. Sozinha no apartamento, com a janela às minhas costas, os barulhos da vizinhança me fazem companhia. Às vezes me apoio no peitoril da janela para olhar a paisagem: as nuvens, casas e prédios, a serra ao fundo. Olho menos que escuto. Os sons do mundo quase me bastam.

Clarice Lispector transformou minha juventude. Mesmo com palavras diferentes. Em vez do Nada, o Tudo e o Deus, eu pensava na unha, no varal, na margarina. Sem distinguir as grandezas: se há margarina, temos Tudo. Se acaba, resta o Nada.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho