Tradução: Maria Célia Martirani
O geógrafo árabe al-Idrisi, já em 1153, celebrava o esplendor de Krems, que em sua opinião superava até mesmo o de Viena. Hoje, ela se parece mais com Vineta, a cidade submersa pelas águas, em cujas ruas — como diz a lenda — é possível vislumbrar alguém perambulando em trajes antigos. Um pedestre surge de uma porta entre as ruelas. Na sombra das horas, figuras descem das tapeçarias para a vida.
Em Stein, cidadezinha ainda mais monótona e solitária — não muito longe de Köchel, que leva o nome do responsável por catalogar as composições de Mozart —, o farmacêutico se enche de entusiasmo com a inesperada chegada de um estranho. Mostra, orgulhoso, a farmácia inteira e lhe fala sobre as glórias de Stein, não sem desdenhar de Krems, histórias de velhas rivalidades municipais entre uma e outra cidadezinha de Wachau.
O cenário combina perfeitamente com a pequena inversão da relação de causa e efeito, que ocorreu naquela noite em Krems. Um modesto hotel, renomado pelo vinho que servia (elogiado pelo imperador Maximiliano, mas para outros, muito ácido), tinha sido escolhido para festejar a minha breve glória daquele dia. À tarde, eu fizera uma conferência sobre Kafka, em Klosterneuburg, o Escorial vienense, que guarda as relíquias de São Leopoldo, o duque Leopoldo III de Babenberg. O local exibe o obsessivo pathos funerário de Carlos VI da Áustria: a cúpula sustentada pela coroa e a cruz, pela coroa dos Habsburgos, carregada como uma cruz.
A princípio, uma conferência tem que ser bem-sucedida e a arte profissional ensina a sugerir reflexões sedutoras, dissimuladas por meio de algumas anedotas espirituosas. Eu me saíra bem, assim como os demais conferencistas do renomado congresso.
Os organizadores, admiradores e alguns amigos de ocasião, que nunca faltam em circunstâncias do gênero, levaram-me para jantar em Krems — sabe-se lá por quê. A neve caía, tornando ainda mais vazio o sonolento tédio da antiga cidadezinha e induzindo a viver aquele momento, aquela noite, como se já tivesse passado, imaterial e silenciosa como a lembrança, um suave nada do qual o branco não parecia ser o sinal real, mas uma imagem suavizada e distante…
Eu era o protagonista do jantar, admirado, com respeito, pelo pequeno círculo. Uma senhora triestina unira-se, discretamente, ao grupo. Era casada com um austríaco e morava, há muitos anos, em Linz, a uns cem quilômetros dali. Orgulhosa de poder estabelecer uma cúmplice familiaridade com o prestigiado orador, quase como se exercesse um pequeno direito de propriedade privada, disse, a um certo ponto, que sua prima tinha sido minha colega de classe na escola e que lhe falava, com frequência, de mim, de nós dois, de nossa amizade. “Não é exatamente minha prima, é casada com um primo meu, espere… seu nome de solteira era… espere, estou com o sobrenome na ponta da língua, se chamava…’’
Não tive, infelizmente, companheiras de classe. Cresci em meio ao suor da caserna de uma turma masculina. Respondi-lhe que, portanto, deveria se tratar de um equívoco, mas ela insistia, tentando se recordar daquele nome.
Eu abomino a parapsicologia e certamente não foi com um prazer misterioso, mas apenas com surpresa, que eu disse com tranquilidade e simplicidade, enquanto ela ainda se empenhava em procurar o tal nome: “Acho que a senhora esteja se referindo a Nori S., mas está enganada, nunca estivemos juntos na mesma turma e ela não pode se lembrar de mim, porque não me conhece, nunca conversamos’’.
Eu me surpreendi, ainda mais do que ela, por ter dado um nome àquela indefinição genérica, mas enquanto ela assentia e confirmava maravilhada, eu não tive tempo para investigar de onde vinha aquela certeza sóbria e incontestável. O prazer que eu sentia diante da evidente mentira objetiva da falante mulher, seu indubitável equívoco, era muito mais intenso do que a moralidade científica que me obrigava a rejeitar afirmações que não correspondiam aos fatos. “Sim, certo, ela mesma, mas como fez para adivinhar? Nori, lhe asseguro, se lembra tanto do senhor, fala sempre do senhor…’’
Eu me esquivava, suave e inequivocamente, enquanto me entregava a uma felicidade clara como a água de um riacho. A falsidade era flagrante.
Nori S. frequentava o terceiro ano do Liceu, enquanto eu estava no segundo. Era belíssima e inalcançável, com aqueles cabelos castanhos que se ondulavam e ficavam mais claros na luminosidade das grandes janelas abertas ou mal fechadas do Liceu. Todos os alunos a amavam há anos, a amávamos com a fidelidade compacta de um batalhão de guarda.
Ao percorrer os corredores de forma distraída e desatenta, ela conseguia transmitir, a seus inúmeros aspirantes, uma compreensão eterna daquilo que uma famosa poesia descreve como “algo além”. Essa noção transcendente se presentificava em todas as imagens ao seu redor e em seu rosto, bem como em seus olhos oblíquos e claros. Tudo nela tocava a beleza, mais evidente do que aquela cantada pelos célebres versos.
Para um rapaz de dezessete anos, uma encantadora garota de dezoito é mais inacessível do que uma diva de Hollywood para um professor. Em geral, não me supervalorizo, nem tampouco me subestimo, quando é o caso, mas é, sempre foi e sempre será impensável preencher a distância entre mim e Nori, a distância que existe entre cada soldado do regimento, alinhado em posição de sentido e a bandeira que se ergue no céu e no vento.
No amor comum por Nori, aprendíamos a universalidade de Eros, que persegue o absoluto, o divino, o Ser que se descortina diante dos olhos de cada um, como a clareira entre os bosques do Monte Nevoso ou a aparição do mar em Miholašćica. Naquele amor, professado sem exceções individuais, éramos todos irmãos, como diante da morte e do futuro que nos esperava, impenetrável devido à excessiva luz de juventude que irradiava.
Eu invejava, só um pouco, meu colega Stefanutti, que obviamente sem ter, da parte dela, nenhuma consideração, era famoso por seu amor não correspondido e, por isso, alvo da zombaria de todos. Ele era, por assim dizer, o apaixonado infeliz oficial, o delegado de todos nós. Tinha, evidentemente, o dom da representação, que mais tarde o levaria aos bancos de alguma assembleia, a cargos certamente menores do que o de deputado dos apaixonados por Nori, mas ainda assim representativos.
Invejava-o porque as gozações e a opinião geral o colocavam, de alguma forma, num relacionamento público com Nori, ainda que de negação e privação, enquanto eu não tinha, com ela, nenhum tipo de relação, nem mesmo indireta e negativa.
De fato, eu conhecia Nori, mas ela não me conhecia, do mesmo modo que sei reconhecer o rosto do presidente dos Estados Unidos, mas o meu é ignorado por ele. Era, portanto, impossível que Nori tivesse falado de mim para aquela senhora, porque ignorava a minha existência, nunca tínhamos trocado qualquer palavra e eu não podia ser um complemento objeto das suas frases, sem dúvida, harmoniosas como o voo das gaivotas.
Eu me deleitava com a ironia da situação, pois a mulher agia como se fosse íntima de sua prima postiça comigo, talvez pensando que isso pudesse, de alguma forma, melhorar a minha noite, que até então tinha sido bem-sucedida por um curto período. A ideia distante, embora improvável, de que Nori tivesse mencionado algo sobre mim, na minha mente, era como uma promoção, um triunfo olímpico.
Disse-lhe depois, enquanto ela protestava e reiterava a veracidade das suas palavras, que eu ficara contente e agradecia por aquela mentira. Mesmo sabendo que era mentira, durante toda a noite, me deixei levar pelo prazer que aquilo me dava. Deixei-me viciar por aquela fantasia como que magnetizado por uma música, não me incomodando, absolutamente, com a certeza de sua irrealidade.
A noite em Krems fora, porém, apenas o irônico e terno prelúdio da minha adiada revanche. Quase um ano mais tarde, em Roma, um amigo, falando de ex-colegas de Liceu, disse-me ter encontrado Nori, poucas semanas antes, de férias, numa praia e que ela se lembrara de mim, contando várias coisas a meu respeito. A essa altura, já era demais e, apesar de ser muito tarde, liguei para o hotel de praia onde, por acaso, eles tinham se encontrado e conversado.
Enquanto esperava que transferissem a ligação, intui o quanto aquilo tudo soava estranho e quando ouvi uma voz feminina, gaguejei confusamente o meu nome, dizendo que, alguns meses antes, em Krems, uma sua prima, a senhora tal, me havia dito que ela… e que, por isso, eu tomara a liberdade de… Mas fui rapidamente interrompido pela voz, do outro lado da linha, que me cumprimentou com alegre confiança e começou a falar como se fôssemos velhos amigos.
Eu era, portanto, o velho de Svevo, que só muitos anos depois encontra uma garota que avistara certa noite, acertando, apenas na memória, a conta pendente que nem sequer fora aberta meio século antes, porque no presente, a luz da vida é obscurecida pela angústia de viver?
A ligeira brisa de verão que entrava pela janela, perto do telefone, era um vento dos espaços infinitos, em que tudo é presente e simultâneo, a rotação de um planeta e a luz de uma estrela que vêm de muito longe. Talvez o Danúbio, nas proximidades de Krems, fosse o Oceano, que envolve o mundo em um círculo, águas que fluem e ao mesmo tempo retornam, margens que sempre se refletem em suas ondas.
O tempo é senhor da causalidade. Uma causa precede um efeito, mas a partir de um efeito, podemos remontar à causa que o gerou. Aquela familiaridade ao telefone era o efeito de um conhecimento mútuo do passado, modificando-o, retrocedendo no tempo.
Sim, o tempo é uma ordem causal, mas — agarrando-me a vagas reminiscências escolásticas e elucidações obtidas, sem muito sucesso, de alguns amigos físicos — lembrei que a relatividade restrita nos diz que a causa só pode se propagar no espaço-tempo a uma velocidade igual ou menor que a da luz. De acordo com essa teoria, dois eventos que não podem ser conectados por um sinal causal, viajando a uma velocidade menor ou igual à da luz, não podem ser ordenados no tempo de forma absoluta.
Então as confidências feitas à prima de Linz e a conversa ao telefone são a causa ou o efeito — talvez os dois, que confusão e que encanto — de uma minha familiaridade com Nori que acontecerá quarenta, não, quase sessenta anos atrás, e a água do Danúbio que corre em Krems já desembocou no Mar Negro? Para evitar confusões, seria oportuno reformar as gramáticas e reduzir os verbos ao infinitivo presente.
A imponência de Nori, nos corredores do Liceu, como o Ser de Parmênides, também não era, nem será, mas apenas é?
O tempo, como Santo Agostinho afirmava, é considerado uma extensão da alma. Será que ele é capaz de abranger os momentos em que eu ainda não existia, mas que minha alma de alguma forma alcança? Gostaria muito mais que fosse a alma de Nori e que ela também me abraçasse, mínimo ponto na grande esfera do coração, em que está tudo e para onde tudo retorna.
Os seus cabelos… Por que será que lembro deles mais escuros, numa noite que já ia morrendo no mar, sem lua, mas luminosa, um clarão ainda no horizonte? A onda quebra branca na praia, recua e retorna. Está lá o claro sorriso do rosto e do mundo.
Um dia, levaram as últimas turmas do Liceu a Miramar, para visitar aquele famoso Centro de Física, instalado no parque do castelo encantador e kitsch, de onde um imprudente e generoso arquiduque partira para se tornar um imperador moribundo.
O diretor do Liceu nos dissera que a aula do ilustre professor cientista faria parte da visita: “Nas teorias de campos conformes da Física, que generalizam a relatividade de Einstein encontram-se, hoje, entidades geométricas que remetem ao conceito parmenidiano de eternidade…”
A voz emergia aveludada e abafada pela distância do tempo, sussurro de folhas na brisa marinha, que passava entre os ciprestes e os carvalhos plantados por Maximiliano e Carlota naquele parque, ilha dos beatos e dos mortos. A voz se perdia no eco da lembrança, ondas se distanciavam concêntricas na lagoa do parque, onde um ou outro jogava, a cada pouco, uma pedra. As ondas sonoras propagavam aquelas palavras entre os recifes e a folhagem, para além da esfinge de mármore que, aos pés do castelo, olhava o misterioso mar. Propagavam-se para além do canal auditivo e do tímpano que as tinham transmitido às sensatas e receptivas sinapses dos neurônios dos ouvintes, graças à soporífera ocasião oferecida por aquela conferência. Propagaram-se ainda mais pela floresta, que se erguia escura e quase envolvia o castelo branco e melancólico, exceto pelo lado voltado para o mar. Elas se espalhavam, indo além, nos anos que se desdobravam a partir daquela hora, da mesma forma que os caminhos se ramificavam em todas as direções a partir da fonte central do parque. Agora, esses sentimentos me alcançavam além da densidade do tempo, ecoando em vibrações de outro tipo, como ondas do coração.
Hoje, agora… o que quer dizer? O eloquente orador insistia em reiterar que hoje e ontem, agora e amanhã, antes e depois só existem no cérebro, volúvel prepotente que determina que o antes seja aqui e o depois, lá.
Quando, portanto, agora? Sempre, que às vezes dura apenas um segundo, diz o Coelho Branco à Alice. O país das maravilhas e a parte de trás do espelho estão em toda parte, ou seja, sempre, que não tem nem fim, nem começo; não há outra parte, nenhum outro segundo.
Se as coisas estão como dizia, dirá, aquele professor, não apenas os tempos verbais, mas também as preposições e os advérbios deveriam ser abolidos. Teorias de campos conformes, entes geométricos, antes e depois que existem apenas na mente — e nessa despótica mente, grande enigma e grande confusão.
Agora, Nori e eu agora… Claro sorriso em seu rosto; a água escorre límpida, nuvens no fundo do mar, transparência do coração. A palavra se alarga até abraçar o grande mar, atrás do orador, a linha reta do horizonte se encurva, a abóbada do céu a fecha…
Se — conforme explicava o orador — no espaço-tempo, este último é representado por uma linha curva em vez de uma linha reta, no caso de massas muito grandes, pode-se tratar também de uma curva fechada, ou seja, de um círculo. Mas então, tudo retorna, tudo é, e eu já estive, já estou na foz do Danúbio, enquanto sigo suas águas para alcançá-la.
Ainda assim, Krems, pelo menos para quem vem de Viena, é depois de Dürnstein; em 1918, alguém arrancou, dos edifícios públicos da Costa Adriática, as insígnias com a águia de duas cabeças e Trieste, antes austríaca, se tornou italiana; em 1989, caiu o muro de Berlim; o Big Bang ocorreu há quatorze bilhões de anos, dizem. Mas um ano quer dizer o tempo que a Terra leva para girar ao redor do Sol e um dia, o tempo que leva para girar ao redor de si mesma. Mas e quando não havia nem Terra, nem Sol, o que significavam anos e dias, o que podia existir e acontecer naqueles anos que não existiam?
Contudo, ao longo dos anos, guerras começaram e terminaram — terminaram onde? As cicatrizes ainda existem; tatuagens gravadas no corpo queimam debaixo da pele do mundo e de cada um.
O mapa-múndi é plano, a mão acaricia a sua superfície multicor e polida. Sob o azul de águas e ilhas distantes, há todo um sangrar e apodrecer. Os meridianos cortam aquela esfera como gomos de laranja. O navio corta aquele fio que corta o tempo.
Por um segundo — o que significa? Não, não um segundo, alguns minutos — a proa está no dia 25 de novembro e a popa, no 26, sim e não, o inverso. Linha limítrofe da mudança de data, um amor que avança, outro que recua — no tempo, certamente — onde se não? Seria também o amor uma pura convenção como aquela linha, aquele meridiano que não se vê, não existe?
Cada meridiano, um gomo, o mesmo meridiano, a mesma hora em Trieste, Dresden, ilhas Lofoten, Luanda, Skeleton Coast Park. No Polo Sul como no Polo Norte chegam todas as pontas de cada gomo, todas as horas do mundo juntas — a que horas Amundsen pisou, pela primeira vez, no Polo Sul?
Não é verdade que o tempo será abolido, como promete ou ameaça o Apocalipse falando do futuro — um tempo do verbo, não a abolição do tempo, mas uma proliferação, mistura, contradição de todos os tempos possíveis e coexistentes; a vida — ou a morte — é um turbilhão vertiginoso.
O tempo, ou seja, a morte.
Em 1996, faleceu V., uma adorável menina que, mesmo após passar anos sofrendo com uma doença que a torturou e desfigurou, nunca perdeu sua inabalável dignidade. Ela permanece como a mesma menina encantadora que era, tanto no passado quanto agora, e será para sempre assim. Aquela data, divisor de águas da vida — e não apenas da sua — é um dique que bloqueia o fluxo das águas.
V. não existe mais, o que isso quer dizer? Shakespeare não é mais um poeta, mas apenas foi e agora não é mais? O que as artérias desgastadas ou outras possíveis aflições têm a ver com sua condição de ser poeta, tanto agora como sempre? E outras, outros, amigas, amigos? — a amizade, outro nome do amor, um caminhar junto, caloroso e arriscado, querer bem é um risco, mas é para sempre, portanto agora…
Algumas amigas e amigos não caminham mais juntos, eles seguiram por outro caminho que leva a outro lugar, mesmo que não se saiba bem onde — talvez tenham ficado um pouco para trás, talvez tenham parado em uma osmiza[1] para beber um copo de Terrano. Daqui a pouco, eu também volto para trás ou sigo mais adiante e os reencontro, se ainda tiver um pouco de Terrano e de presunto — que com certeza ainda deve ter por lá. Há algumas osterias em que se está melhor do que neste mundo. Se depois — depois do quê? — encontrássemos boas osterias, mais do que anjos que tocam trombetas entre as nuvens, não seria nada mal. Talvez lá eu pudesse ser mais ousado, afinal lá os anos não contam — mas quando é que contam? — e um rapaz encabulado poderia criar coragem…
Eu nunca tinha verdadeiramente falado com Nori, antes daquela noite em Roma e só por telefone. Gostaria de tê-lo feito; talvez lá, naquele outro lado, teria menos medo, aquele medo que sempre aparece nessas coisas, quando são verdadeiramente importantes. Gostaria de ter falado com ela, antes; de tê-la beijado, beijá-la…
Amar, sinônimo de ser, verbo defectivo que conhece apenas o infinitivo presente. As transformações conformes especiais — eram quase uma ideia fixa do orador em Miramar — projetam os pontos do espaço-tempo do finito ao infinito, em um conjunto, que Penrose (parece ser outro daqueles luminares, que explicam como funcionam o antes e o depois) define como cone de luz ao infinito. Neste cone — ele afirma, afirmou, afirmará — tempos futuros e passados aparecem rigorosamente equivalentes em apenas um só e único ponto.
A vida eterna, talvez? É o que dizem os de outra paróquia, que têm a pretensão de mostrar algo que não se vê, mas pelo menos não pretendem demonstrá-la como o teorema de Pitágoras. Por outro lado, alguns professores são tão confiantes e seguros com os seus logaritmos, algoritmos e buracos negros… E agora também LUCA, last universal common ancestor, a proctobactéria ou talvez também não, mas mesmo assim, o mais velho ancestral de todos os seres vivos, mono e pluricelulares, de todos nós, incluindo fungos e amebas. O que importa se ninguém viu? Nem mesmo Deus — ninguém viu — como afirmou o apóstolo João, o favorito. Também nunca vimos um buraco negro, onde uma estrela colapsa. Não podemos dizer que antes havia a estrela e depois o buraco negro, porque é o cérebro que determina a sequência do antes e do depois. Portanto, se o cérebro não existe, não há antes nem depois, não há nada — apenas poeira cósmica invisível, pequenos mosquitos que olhos envelhecidos podem ver flutuando no ar, mas que na realidade não existem.
A estrela resplandece em sua luz branca e colapsa num buraco negro, os cabelos de Nori são brancos e eram, são — serão? — castanho-escuros, não, não tão escuros.
Exaltava-se o professor, obcecado com o antes e o depois e se regozijava com o poder do hipocampo — aquele voluntarioso cavalinho-marinho, aninhado entre os lobos do cérebro. Exaltava-se com Cronos, com o Tempo, soberano deposto sentado no trono como numa cadeira bamba. Além disso, aquele professor, com o seu sotaque da Romanha era dos mais simpáticos para nós, recrutas que os oficiais incentivavam a se dedicarem na batalha pela vida, ou melhor, pela ciência.
Vida eterna, portanto? Sim, mas aqui e agora — eu ficara impressionado ao ouvi-lo dizer e escrever isso; ele, que chamam de Sua Santidade e que parecia sempre desconfortável e atrapalhado em sua roupa branca, mas que tivera a coragem de ser ele mesmo, em vez de ser o “representante de Deus”. Assim escreve, escrevia aquele homem, aquele ex-sucessor de Cristo, a vida eterna agora e sempre, mas sobretudo agora, não uma imaginária existência que continua depois da morte, um ilimitado prosseguir de ontem hoje e amanhã e sabe-se lá o que mais, entre punições e prêmios, como tantos fiéis querem crer. Esta é a vida eterna que vocês devem conhecer — era, ao menos, o que dizia aquele que se proclamava filho de Deus e o disse pouco antes de morrer.
Conhecer, viver a verdade. A vida verdadeira, autêntica, impregnada de significado; vivida também no tempo, no tempo iluminado por um valor que não pode ser destruído por nada e por ninguém, nem alterado pelo fluir da areia na ampulheta, imediatamente invertida e sempre cheia novamente quando parece vazia. Sempre quer dizer viver ou morrer? O vidro da ampulheta se ilumina e se colore com a luz que o atravessa, uma luz âmbar, quando a ampulheta está cheia de areia e amarelo-pálida quando se esvazia.
Límpida luz nos olhos imortais de Nori, naquele olhar que não envelhece. Vida breve, vida eterna; as nossas contingências — escreveu aquele velho poeta entre as dunas e as praias de Grado — colorem a eternidade de Deus; as ondas de luz, números e frações se tornam o azul do mar, o vermelho-violeta do entardecer, a claridade nos olhos de Nori.
O grão opaco morre sob a terra, a espiga se curva ao vento. Eterna folha da árvore sagrada, não muito longe de Benares e do Ganges, sob a qual um príncipe mendigo afastou a dor e o medo de morrer. Na folha que morre — explica aos discípulos — há o sol que a aqueceu, a nuvem que matou a sua sede com a chuva, a terra que a nutriu; a folha devolve as coisas e os eventos que a constituíram e são, continuam sendo ela. Eterna impermanência, eternidade de cada coisa.
Eterno desvanecer, eterno ser; a flor morre no fruto, portanto é o fruto — escreveu um genial e pomposo professor de Jena, demonstrando que também o maior dos filósofos pode ser um poeta. “Morra e torne-se”— dizia aquele poeta de Weimar, mais poeta do que o primeiro que, apesar de ocupar o cargo de conselheiro do Ducado, aumentava seu salário de acadêmico com parcimônia. “Morra e torne-se”, assim verdadeiramente será, se não quiser ser apenas um hóspede apressado e obscuro em uma terra opaca.
Os oleandros do meu jardim, rosa brancos vermelhos, a cada ano, outros, os mesmos. Medo de morrer? Rei Ane, o Velho, você não morreu, diz a lenda, mas renasceu em Egil rei. Beba, velho rei, é você que esvazia e enche o copo.
Palavras — de quem, dos outros, de ninguém; as palavras são como o ar e as estações, não pertencem a ninguém. Grande confusão, grande demais para a pequena cabeça que a contém. O universo em uma noz, tão fácil de quebrar, basta batê-la com um pouco de força sobre a mesa. Mas enquanto isso, o miolo amadurece, torna-se mais macio e saboroso, e mesmo sob a casca compreende e percebe algo. Eu também agora compreendo, finalmente, até o paradoxo dos gêmeos, um jovem, outro um pouco mais envelhecido, o que foi viver na montanha.
Nori é mais jovem do que os seus coetâneos que não viveram perto do mar como ela; ela tem o mar dentro de si, talvez não saiba, não se lembra de quando era mar e criatura marinha, como tudo o que vive. Os seus anos são o maço de flores que tem nas mãos, papoulas do mar. Os seus olhos — não vejo a sua cor, mas são claros, luminosos. De qualquer forma, ela está lá, aqui, no cone de luz, uma clara luz azul além-mar.
De Malta se vêm, ao longe, atrás do branco das espumas do grande azul, Panarea e Stromboli. Stromboli negra, as suas praias negras. Em grego, glaukós quer dizer azul, mas também o que escurece, azul quase negro, mas brilhante, vida eterna na luz daquele olhar. Eu o tinha visto também em Krems, quando…
Tempos futuros e passados, um só ponto, um só tempo… Um infinito presente? Atuamos, talvez, em dois espetáculos, um linear e outro circular, iluminados por uma luz que desce do vértice daquele cone de que tanto gosta o professor Penrose…
Há muitos anos, em Trieste, na rua XX de Setembro, havia um cinema com duas grandes telas, em duas salas adjacentes, separadas apenas por algumas escadas que levavam às fileiras de assentos. O filme exibido era o mesmo, atendendo às expectativas de um público frequentemente numeroso. De cada poltrona nas duas salas, era possível ver as duas telas, uma de frente para você e a outra ao seu lado. A sequência do filme era idêntica em ambas. No entanto, havia uma peculiaridade: a possibilidade de iniciar a projeção em uma delas, meia hora antes ou meia hora depois da outra. Isso criava a oportunidade única de exibir eventos e momentos diferentes ocorrendo simultaneamente: o protagonista morrendo em uma tela e, na outra, continuando sua história, lutando e se apaixonando, mesmo após seu suposto fim.
Seria isso, ou algo similar, o cone de luz ao infinito em que não há uma ordem temporal, nem causal? Região fora do tempo? Certo, sei muito bem que existe um ponto do espaço-tempo ordinário, um ponto que físicos e cosmólogos considerariam impreciso. Mas talvez um matemático esteja sendo excessivamente rigoroso, utilizando conceitos da geometria topológica. Não é garantido que um ponto saiba qual compasso o desenhou ou a rede da qual ele faz parte. O que dizer então das transformações do grupo conforme, que manipulamos sem muito conhecimento?
Pode ser, então, que entre aquela noite em Krems e aquele telefonema de Roma, eu tenha sido arremessado pelo espaço-tempo ordinário na região fora do tempo e depois, vice-versa, porque não há dúvida de que, neste momento, o meu tempo é retilíneo, como a caneta com a qual estou escrevendo, flecha que corre sem retorno em direção ao fim, no irreversível processo exaustivo que constitui a escrita e a vida, doenças com desfecho mortal.
Se as artes e as ciências tinham as suas deusas e Urania era a Musa que conhecia as estrelas, Nori poderia ser a Musa da translação, como Poincaré denomina a dinâmica daqueles deslocamentos temporais.
Mais do que isso, ela devia ser uma divindade superior — porque adverte, advertia o cientista no parque de Miramar — nenhuma translação de Poincaré, ainda que grande, conduz para fora do espaço-tempo ordinário e para qualquer sistema físico. No espaço-tempo ordinário são necessários um tempo infinito e a velocidade da luz para chegar ao cone de luz ao infinito, enquanto aquilo que me aconteceu — entre Krems e o telefonema de Roma — exigiu, modestamente, apenas alguns meses.
A transformação no cone de luz ao infinito, na região sem tempo, só é possível para sistemas físicos sem massa e, embora eu possa me considerar satisfeito com meu corpo bastante ágil, não posso negar que tenho uma certa massa. Talvez eu tenha recuperado Nori, transportando-a de volta do cone de luz para o de sombra, e agora, Nori, nunca tenha, sequer, tomado conhecimento de mim…