Foi num bar LBTQ, no bairro de Santa Cecília, que vi pela primeira vez um livro de Sylvia Molloy. Uma portinha no corredor dava acesso a uma minilivraria, uma área tão pequena quanto um lavabo. Na prateleira de obras temáticas, entre várias autoras lésbicas, vejo a capa laranja de Desarticulações, com tradução de Paloma Vidal. Folheio o volume fininho, leio a primeira linha: “Tenho que escrever estes textos enquanto ela ainda está viva”. A orelha fala em “escrita autobiográfica”. Compro um exemplar, guardo na bolsa, e volto ao bar.
Estava ali para um encontro do clube de leitura. O livro da noite, Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado, tinha recebido destaque no jornal. Não gostei tanto da obra, mas fiquei curiosa de saber a opinião de outras leitoras. Frustrada, logo percebi que a conversa se resumia às relações abusivas (tema do romance), em vez de aspectos literários. Acompanhei o debate com curiosidade antropológica, e levei quase trinta minutos, ao final, até conseguir um carro de aplicativo pra ir embora.
Num canto da estante, deixo os livros novos a ler. Quando aparece um tempo livre, pego algum deles. Alguns passam direto do canto dos novos para a prateleira de futuras doações. Outros vão dali para a fileira de sala de aula. Raros são os livros que ficam na estante das obras a guardar. O livrinho de Sylvia Molloy, embora fino, ficou meses entre os novos. Eu lia um pedacinho aqui e ali. A narrativa se compõe de lembranças e cenas com ML., ex-amante que perde a memória. Cada fragmento é um microconto — e cada visita, como um diário, traz a redescoberta da perda.
INTERRUPÇÃO
Sinto que deixar este relato é deixá-la, que ao não registrar mais meus encontros estou negando algo a ela, uma continuidade da qual só eu, nessas visitas, posso dar fé. Sinto que a estou abandonando. Mas, de algum modo, ela mesma está se abandonando.
Esse é o último fragmento. Não o fim das visitas, mas o fim da escrita sobre tais visitas. O livro foi publicado em 2010. Sylvia, saudável, visitava sua ex-companheira, levava alfajores, ajudava com o contador.
Li há muitos anos, em Leituras de operárias, de Ecléa Bosi (e cito de memória), que as trabalhadoras da fábrica de Osasco, entrevistadas na pesquisa, gostavam de biografias, por serem histórias reais. (A obra de Ecléa talvez ande meio esquecida, pois não encontro na internet onde confirmar se a fábrica era mesmo em Osasco.) Compartilho com elas o gosto pela realidade — um gosto modesto pela verdade, embora eu saiba pouco de filosofia e seja incapaz de definir o que seria isso, realidade e verdade.
O volume de Desarticulações traz também Vária imaginação, em que Sylvia escreve sobre a família e a infância em Buenos Aires. Os dois textos gravaram, em mim, esta jovem crescendo na América Latina, meio apaixonada pela professora de francês, e a Sylvia madura, viajada, professora em Nova York.
Outros meses se passam, e encontro na Livraria Simples o último livro da autora, Animalia, publicado no ano de sua morte, em 2022. Aqui Sylvia fala de sua casa, da varanda onde descansa já doente, das árvores no jardim, dos gatos e cachorros. Uma cena que ela não esquece: o guarda municipal esmurra contido a viatura, antes de cumprir sua obrigação de sacrificar um guaxinim atropelado.
A tristeza me acompanha por alguns dias, ao terminar a leitura. Seu amor pelos animais me comove mais que a vivacidade intelectual e a dedicação à literatura. Sylvia Molloy partiu em paz. Pelo nome de sua companheira, encontro um endereço aproximado da casa, em Long Island. No visualizador de ruas do Google, passeio pela via vazia e sem calçada, observando as casas esparsas quase escondidas pelas árvores. É difícil deixá-la ir.