Das vezes em que Angela Davis esteve no Brasil, consegui acompanhá-la em três ocasiões: em São Luís, Maranhão, em 1997; em Brasília, Distrito Federal, em 2014; e em Cachoeira, Bahia, em 2017. Esta última rendeu uma crônica sobre os encontros chamada A cadeira de Miss Davis.
Em 2019, na passagem por São Paulo, recebi três convites para integrar a claque de Angela. Aceitei um deles, mas, no fim das contas, não consegui ir. Foi depois de ouvir a transmissão do evento para 15 mil pessoas no Espaço Ibirapuera que entendi a razão do meu pouco empenho para vê-la: me incomodou a transformação de uma honorável e coerente militante comunista em popstar, um produto palatável de consumo para as classes médias.
A pergunta de Bianca Santana, uma das mediadoras da conversa para o público, acendeu o estopim do meu entendimento: “Onde vocês estavam quando nos manifestamos na avenida Paulista (éramos menos de cem pessoas) em desagravo à morte da menina Ágatha Félix no Complexo do Alemão? Onde vocês estavam durante todas as manifestações que fizemos contra o encarceramento de Rafael Braga e de milhares de outros jovens negros, presos sem provas e sem acesso a julgamento justo?”.
Aquelas pessoas não ocupavam as ruas lutando por justiça para os alvos do genocídio negro, mas se mostravam embevecidas por Angela Davis, uma mulher comunista cuja radicalidade foi transformada em insumo de uma imagem de popstar para consumo volátil e instantâneo da plateia da vez.
Angela, por sua vez, sempre atenta às causas políticas que professa e à importância da solidariedade internacional nos casos de perseguição a ativistas de direitos humanos, foi à casa de Preta Ferreira, finalmente libertada da prisão que criminaliza os movimentos sociais, e perguntou: “O que posso fazer para ajudar?”.
Em outro momento dessa passagem pelo Brasil, Angela Davis externou seu desconforto em ser considerada ícone do feminismo negro no país natal de Lélia Gonzalez, com quem temos tanto a aprender, aquela que construiu formulações sobre a interseccionalidade das opressões (de gênero, raça, classe e sexualidade) às mulheres negras nos anos 1970 e 1980, antes mesmo de o termo existir. O arqueiro zen e o caçador Oxóssi mantêm conexão silenciosa com o coração enquanto agem. São econômicos e precisos nos gestos, fazem o que precisa ser feito, dizem apenas o que precisa ser dito.
Ainda em 2019, estive na casa de Angela Davis, na Califórnia, junto com um bando de outras mortais. Eu fazia residência literária na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e fui convidada para uma reunião com Anielle Franco sobre o Instituto Marielle Franco. O encontro aconteceria num espaço institucional qualquer, mas houve um problema e não puderam nos receber. Então Gina Dent, companheira de Angela, ofereceu a casa delas para abrigar a reunião. Simples assim. Para matar a curiosidade de vocês, conto que o que pudemos ver da casa foi algo muito bonito, arejado e confortável, nada parecido com a simplicidade franciscana da casa saqueada do presidente deposto da Bolívia, Evo Morales, que pudemos acompanhar pela TV, mas longe também de qualquer luxo ou ostentação.
Na crônica referida no primeiro parágrafo, presenciei um episódio emblemático da humanidade da pantera. Um grupo de mulheres negras socializava na calçada de um bar, e Angela Davis chegou. A cadeira vazia que lhe tocou para sentar estava num ponto mais alto do passeio público, levando Angela, que já é muito alta, a ficar numa posição mais elevada que todas as mulheres da mesa. Ela não sossegou até mudar de lugar e ficar no mesmo patamar das demais.
Entendido o seu recado, Angela. Vamos em frente, podemos seguir suas pegadas mantendo nossa luz própria e evitando a afetação dos holofotes que cegam.