Eu sou uma mulher de sorte. Essa afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras não pronuncio.
Acontece que fui à Cachoeira turistar com familiares e, à noite, resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Angela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente, vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Angela. É Angela. Ela saiu de casa. Ela está vindo”.
E quem é que vem para a calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Angela, sem sobrenome, porque passou a ser da família.
Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e de sua amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.
Conversa vai, conversa vem, uma pessoa postada à cabeceira da mesa iniciou com Angela um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui convidada, e me resignei ao silêncio observador.
Alguém, creio que a própria Angela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Angela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem.
A primeira sensação, quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: o que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar, as anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade, falaria algo.
Angela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como eu estava. Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil, a São Luís do Maranhão: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas em que vinha ao Brasil.
Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia.
Ainda na linha da simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, estive lá para encontrar uma companheira de Geledés, participante da conferência. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom, que nunca o trouxe, e como as batatas fritas de Angela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicitasse; sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e, ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.
Bem, essa prosopopeia toda foi para justificar por que sou uma mulher de sorte. Mas o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Angela Davis, que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas a deixou em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando tratar-se da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.
Então, mais uma vez, Angela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou nivelada às outras pela calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”.