Escrever para quê?

Logo na abertura de São Bernardo, de Graciliano Ramos, o personagem-narrador, o fazendeiro Paulo Honório, diz que pretende produzir um livro de memórias
01/03/2007

Logo na abertura de São Bernardo, de Graciliano Ramos, o personagem-narrador, o fazendeiro Paulo Honório, diz que pretende produzir um livro de memórias “a partir da divisão social do trabalho”. Honório, para a feitura do livro, se valeria dos préstimos de alguns amigos e, ao final, poria o seu nome na capa. Já vê “os volumes expostos”, “um milheiro vendido” graças a elogios à própria obra que ele, Paulo Honório, compraria à “esfomeada” Gazeta. Neste primeiro momento, duas coisas parecem guiar a necessidade de ser escritor do fazendeiro: 1) obter glória (ele chega a sugerir que desejaria “contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais”) e 2) obter lucro. No início do segundo capítulo de São Bernardo, após ouvir o “pio da coruja” (que lhe traz lembranças negativas, associadas à Madalena, a mulher que, por ter uma visão de mundo divergente, prefere o suicídio a se submeter aos mandos do fazendeiro), Paulo Honório anuncia que resolveu retomar o projeto do livro sem indagar se isto lhe “traz qualquer vantagem, direta ou indireta”. Mesmo tendo dificuldades para escrever, já que não é do ramo, já que a respeito de letras “é versado em estatística, pecuária, agricultura”, Honório, tomado por uma necessidade imperiosa, termina partindo para a composição da obra (que efetivamente começa no capítulo três do romance de Graciliano). A vontade que se lhe impõe agora é de tal ordem que Honório, diferentemente do que já havia indicado no capítulo de abertura, se diz capaz de até mesmo pôr um pseudônimo na obra. Portanto, as diferenças entre o Paulo Honório-escritor do primeiro capítulo de São Bernardo e o Paulo-Honório-escritor do segundo capítulo do romance são basicamente duas: no primeiro capítulo, para obter glória e lucro, ele se valeria de ghost-writers; no segundo, ao utilizar pseudônimo, seria, por assim dizer, ghost-writer de si mesmo. É no segundo capítulo que é colocada a questão central da escrita literária: a da necessidade de expressão. Honório precisa escrever seu livro de memórias para saber/entender onde se perdeu. Para dar uma certa ordem à sua existência. Para organizar-se interiormente. Por isso é que não lhe interessa mais as questões de glória e/ou de lucro. Um valor maior se lhe impôs: o de expressar-se. É incrível como Graciliano Ramos, em dois pequenos capítulos de um romance, tece questões de metalinguagem e da fatura da obra literária de forma rica, intensa, atual. Afinal, escreve-se para quê? Para obter glória, desejam alguns. Para obter lucro, preferem outros. Para expressar-se, como afinal acabou admitindo o protagonista de Graciliano. Ou a mistura desses elementos, no todo ou em parte. Talvez hoje estejamos num momento em que muitos escrevem para obter fama — e não mais glória. Há os que acreditam que a noção de glória — que incorpora valores ligados à permanência — esteja em crise, e o mercado impôs o critério da fama. E a fama, sabemos, é questão de moda — é passageira. Atrela um produto a um produtor. Acabada a moda do produto, afunda-se o produtor. Quantos grupos musicais aparecem e, em pouco tempo, se apagam no mercado? A fama tende a ser descartável. Claro: há aqueles que reúnem glória e fama. Chico Buarque, por exemplo. É glorioso e é famoso.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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