Impasse

O diálogo entre o resenhista e um leitor num café de Curitiba sobre “Histórias prováveis”, de Marco Aurélio Cremasco
Marco Aurelio Cremasco, autor de “Histórias prováveis”
01/06/2007

— Ei, você não é o Marcio que escreve no Rascunho?

— Também escrevo na revista Idéias.

— Eu leio as resenhas que você escreve.

— Mesmo?

— Leio tudo que você escreve.

— Sério?

— É. Mas não gosto de tudo.

— Nem eu.

— Nem você?

— Nem eu.

— Posso me sentar?

— Claro. Por favor.

— Marcio, você já leu o livro do Cremasco?

Histórias prováveis?

— Esse mesmo.

— Acabei de ler.

— E daí, Marcio? Que tal?

— Bom.

— Bom?

— Bom.

— Esperava mais de você, Marcio.

— O quê?

— Esse é o seu parecer sobre o livro?

— O livro é bom.

— E por que é bom?

— O Cremasco trata de impasses. Os contos mostram o homem diante de impasses…

— Marcio, desculpe interromper, mas você está repetindo essa palavra, impasse, em muitas resenhas. Você está se repetindo, sabia?

— Bebe algo?

— Sim.

— Garçom, dois cafés, por favor.

Impasses

— O segundo conto, O livro de geografia, tem a ver com isso que chamo de impasses.

— Esse conto é bom, Marcio.

— Claro que é bom. É ótimo.

— Por que é ótimo, Marcio?

— Você leu, não leu?

— Lógico que li.

— Então você sabe do que estou falando. O personagem se propõe a escrever um livro de geografia. Do mundo. Depois, percebe ser uma tarefa relativamente difícil…

— Daí, ele pretende escrever sobre a Terra…

— Desiste e tenta escrever sobre as Américas…

— E assim vai desistindo do projeto…

— Até se dar conta de que não conseguiria escrever nem mesmo sobre a sua geografia pessoal…

— Agora entendo, Marcio. Isso é o impasse, não é?

— Isso mesmo. O conto trata da impossibilidade de se fazer as coisas. Estou com livro aqui. Na página 30 tem um fragmento interessante. Vou ler. Posso?

— Pode sim.

A geografia da sua vida mudara e ele nem se dera conta. Desesperado, olhou para as mãos, vendo-as envelhecidas com dobras cartográficas que mudaram a sua geografia. Mirou-se no espelho e viu que o tempo lhe causara sulcos, pelos quais lágrimas escoavam feito os rios que nunca navegara. Esse mesmo tempo, que foi consumido na busca perfeita da perfeita geografia, trouxera o vazio de nada ter feito: nem o livro de Geografia nem a si próprio. No seu último suspiro pôs-se a escrever:

No início era o Caos…

— Ei, Marcio. Esse conto também trata da impotência. O personagem se dá conta de que a existência se aproxima do fim e ele não fez nada.

— Esse é o impasse dele.

— E de muita gente.

— No livro tem outros contos que também tratam de impasses.

— Por exemplo?

— O conto Esperança apresenta uma personagem que acredita numa existência melhor. E nada melhora.

— O nome dela é irônico, não é Marcio?

— Exatamente.

— O conto Casais: crônicas quase mórbidas também trata de impasses, impossibilidades.

— Também.

— Agora estou entendendo esse negócio de impasses.

Casais: crônicas quase mórbidas é dividido em três fragmentos, e os fragmentos dialogam.

— É mesmo…

— No segundo fragmento, a personagem está conversando com o marido. Vou ler um trecho. Posso?

— Pode sim, Marcio.

Não carece me dirigir a palavra. O seu silêncio não mais aborrece. Deitarei. Também não precisa me aconchegar, envolver-me, aquecer-me. Passamos da idade dos casais que vivem se esfregando até durante o sono. Viro-me do outro lado para evitar a sua respiração. Você sabe que gosto de arzinho frio que refresca as noites maldormidas. Sinto-me ótima deitada de bruços. Levanto. Escovo os dentes. Ainda na cama? Tomo café. Você quer?

— Isso é bom, Marcio.

— Muito. O impasse aí é a dificuldade de relacionamento.

— Não é nesse conto que o marido…

— Está morto.

— Mórbido.

— E irônico. Mas muito bom.

— Bom mesmo.

— A personagem conversa com o marido. Mas ele já está morto.

— Impasse total, Marcio.

— O seu café vai esfriar.

— O seu também.

— Vou pedir um pão de queijo. Quer um também?

— Quero.

— Garçom, por favor.

Personagens

— Marcio, o Cremasco também escreveu contos em que os personagens não são humanos…

— Também.

— Tem um que o protagonista é uma onça…

— É o conto A onça-pintada.

— Tem outro com flores.

— Esse se chama As flores de Lírico Cravo.

— Que tal?

— Interessantes.

— Interessantes, Marcio?

— Isso. Interessantes.

— Você não está desconversando?

— É que eu prefiro A paixão segundo qualquer pecado.

— Por quê?

— Veja, o Cremasco escreveu alguns contos em que os personagens não são humanos. A invasão dos ratos fala dos humanos a partir de bichos.

— Tipo A revolução dos bichos?

— Lembra.

— Tipo Fazenda modelo?

— Também lembra. Mas no conto A paixão segundo qualquer pecado ele transcende.

— Transcende?

— O conto tem como personagens os pecados capitais.

— Preguiça, Ira, Avareza, Inveja…

— Isso mesmo.

— É, Marcio. Esse conto mostra também um impasse?

— Não há como não pecar. Esse é o impasse do protagonista. Mas o livro, de uma maneira geral, mostra impasses do humano diante do inesperado, do porvir, da condição humana…

— Os impasses do homem são o mote do Cremasco.

— É possível dizer que sim. Posso ler um trecho?

— Pode sim, Marcio.

Venho do palácio da Preguiça. Sou a Ira. Estou em uma colina cercada por pedras, vegetação rasteira e uma multidão de pecadores com as feridas expostas ao asco deste reino. Malcheirosos, sedentos, esfomeados. No alto, alguém, que daqui me parece ser o Pecador, fala sem cansar e solta no ar uma promessa destinada à massa ignorante. São palavras lançadas ao vento, laçando almas perdidas, adormecidas no doce embalar de um encantamento. Que multidão ensandecida! Sente e crê no que não tem sentido, e não vê o que é para ser visto.

— Ei, Marcio, vou pedir mais um café. Quer um também?

— Aceito.

— Garçom, por favor.

No presente

— Marcio, o que mais você tem a dizer sobre o livro do Cresmasco?

— É um livraço.

— Livraço?

— Sim.

— Diga mais sobre ele.

— Chama a atenção a divisão dos contos.

— Em números?

— Isso. O autor fragmenta os contos.

— Como se fossem rupturas? Fraturas?

— Isso mesmo.

— E que função tem isso, Marcio?

— Olhe, o primeiro conto, Histórias prováveis, que empresta nome ao livro, funciona bem com tal recurso.

— Por quê?

Histórias prováveis tem várias partes, cada uma trata de uma situação. Mas há conexão entre todas as partes.

— Entre todas?

— Sim. São fragmentos, aparentemente aleatórios, mas que mostram impasses.

— Impasses. Você não conhece outra palavra, Marcio?

— Mas o conto trata justamente disso.

— Você pode ler uns fragmentos?

— Aleatoriamente?

— Aleatoriamente, Marcio. Pode ser.

Deixou uma pasta amarela como quem se livra de obrigações, transferindo-as para mim. Dias depois, morreu.

— Só isso, Marcio?

— Vai outro agora.

Era doida. Maluca comum. Comia o vento. Bebia a chuva que do céu não caía. Nem sei explicar.

— Então, Marcio?

— Espere. Tem mais.

Vamos aprender com os pirilampos a arte de enxergar no escuro.

— Antes que você peça, tem mais.

Ontem encontrei um livro que fala.

— E mais ainda.

Em 2053 não estarei vivo. Não terei o privilégio de ver as coisas que nem imagino existir.

— Mas isso não é aleatório demais?

— Do jeito que eu li até que é.

— E então, Marcio?

— Mas os textos, na íntegra, têm sentido. Mostram impasses…

— Você só fala em impasses.

— Mas o conto e o livro tratam disso.

— Você não tem mais nada a dizer?

— Tenho.

— Então?

— Quer mais um café?

— Não, Marcio.

— Eu quero. Garçom, por favor.

Oscar Wilde

— Você está bebendo muito café, Marcio.

— Não dizem que café faz bem?

— Do jeito que você bebe deve fazer mal.

— Será?

— Fale mais sobre o livro do Cremasco.

— Você leu A importância de ser Oscar?

— O último texto?

— Esse.

— No texto da orelha está escrito que é uma novela.

— Vou encarar o texto como um conto. Pode ser?

— Pode. Você está dizendo…

— Conto ou novela, é um texto genial.

— Genial?

— O narrador, de repente, em meio a livros, encontra alguns personagens…

— Entre eles, Oscar Wilde.

— Genial.

— Por que genial, Marcio?

— Ele conversa com Wilde e Wilde responde com aquelas frases certeiras.

— Já fizeram isso com outros autores?

— Não vem ao caso. O texto funciona.

— O Wilde tem pontos de vista interessantíssimos a respeito de homens e mulher, Marcio.

— Também acho. Sobre a impossibilidade de homens e mulheres serem amigos…

— Me fale mais, Marcio.

— Olhe, preciso trabalhar.

— Já?

— Já. Foi um prazer conversar com você.

— O prazer foi meu, Marcio.

— Mas, desculpe perguntar, esqueci o seu nome…

— Esqueceu?

— Esqueci não. Não sei o seu nome…

— Ah, como você fala, não vem ao caso…

— Mas…

— É, Marcio. Sou um leitor.

— Eu também sou leitor.

— Estou de olho no que você escreve.

— Tudo bem. Preciso ir agora.

— Me prometa uma coisa, Marcio.

— Depende…

— Pare de se repetir nas resenhas.

— Vou tentar.

LEIA ENTREVISTA COM MARCO AURÉLIO CREMASCO

Histórias prováveis
Marco Aurélio Cremasco
Record
160 págs.
Marco Aurélio Cremasco
Paranaense de Guaraci. Escreve há muito. Sua estréia foi poética: o livro A criação faturou o Prêmio Xerox do Brasil & Revista Livro Aberto. Ao lado de Ademir Demarchi, fundou a revista Babel. Cremasco traduziu poemas de Langston Hughes, Robert Lowell, Enrique Lihn, Mario Benedetti e Oscar Wilde. Em 2003 ganhou o Prêmio Sesc com o seu primeiro romance, Santo Reis da Luz Divina. Ele vive em Campinas, onde é professor na Faculdade de Engenharia Química da Unicamp.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho