A espontaneidade é talvez um dos elementos essenciais à boa tradução. Não que a tradução feita por encomenda, elaborada em série, como trabalho rotineiro, não tenha seu valor e não possa ter alta qualidade. Pode, sim, e muitas vezes, tem. A tradução feita por escolha própria do tradutor, porém, acrescenta ao texto algo que nem sempre é possível alcançar na obra vertida por demanda de uma editora. Acrescenta uma pitada de intimidade que só podem ter as relações nascidas da liberdade mais pura.
Acrescenta o tempo necessário para a maturação. O tempo necessário para digerir, com reflexão, o texto de uma obra que atiça a cobiça do tradutor. Cobiça que o faz desejar ser sua a obra de outrem, e que ele a faz sua por meio de um complexo processo de absorção que culmina no exercício tradutório. Não se trata apenas de um período de dias ou semanas, mas de meses ou anos. O lento amadurecimento de uma idéia, que se torna projeto, que se expressa em texto, que se cristaliza em livro.
Às vezes a relação se dá com a obra, outras vezes com o autor. Vêm-me à memória os casos de Boris Schnaiderman com Dostoiévski e de Curt Meyer-Clason com Guimarães Rosa, para mencionar apenas dois. São relações que se constroem em torno da obra e que visam a outra obra, de envergadura comparável. No primeiro caso, constrói-se ponte entre séculos; no segundo, entre continentes. Em ambos, admiráveis os frutos.
Frutos amadurecidos em condições mais propícias, certamente, que aquelas que cercam o tradutor sujeito às demandas de uma editora. Não que aqueles tradutores também não estivessem premidos por alguma demanda, inclusive de seus editores. A diferença reside no grau de escolha, na amplitude de movimento que possibilita e dispara a desenvoltura. Escolher não só o que traduzir, mas dar-se certa (ou ampla) liberdade no tocante aos tempos.
A liberdade de escolha confere ao tradutor algumas vantagens invejáveis no ramo. A identificação com a obra, ou com o autor, ou ambos, é fator que pode moldar positivamente o texto traduzido. A leitura distendida e contemplativa. O tempo para releitura, pesquisa e ensaio. A intuição que só a espontaneidade e a intimidade podem acionar.
A oportunidade de perscrutar não só a obra, mas o próprio espírito do autor. Como diria Paulo Rónai, a tradução é o exercício eficaz para penetrar na intimidade de um grande espírito. É ela que obriga o autor da tradução a vasculhar meticulosamente o texto original, sopesando o sentido de cada frase, adivinhando mensagens ocultas e alternativas impensadas numa primeira leitura. É a tradução que convida a “reconstituir a paisagem mental” do autor, fazendo, de certo modo, o trajeto inverso da construção original: não da idéia à palavra, mas da palavra ao pensamento.
A tradução obriga, impõe suas próprias regras. É um jogo que, para ser bem jogado, exige o percurso de certas etapas. Quando essas regras, quando essas etapas são cumpridas com a faísca da espontaneidade, é difícil duvidar que o texto não ganhe em virtude, em altitude, em fluidez.
A mescla de concentração e espontaneidade que experimenta o tradutor na tradução do texto (ou do autor) livremente eleito é a própria receita do sucesso. Nem sempre será o sucesso editorial, mas, certamente, terá suas vantagens expressas em qualidade. À disposição do bom leitor.