Rodrigo Ferrari era um jovem estudante de História quando, em meados da década de 1990, foi trabalhar numa das principais livrarias cariocas da época. Gênese de um conceito que mais tarde seria abraçado pela Travessa, a Dazibao tinha lojas em Ipanema, em Botafogo e no Largo do Machado, além de uma pequena sala no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Foi nessa pequena dependência, situada no coração da Praça Tiradentes, que Rodrigo se formou livreiro. Quando a Dazibao decidiu fechar a sala, em 1998, ele já estava definitivamente arrebatado pela profissão. E, em sociedade com a amiga Daniela Duarte, topou assumir o espaço, que foi rebatizado de Livraria Folha Seca.
O nome homenageava o chute cheio de efeito inventado pelo jogador Didi, meio-campo do Botafogo, do Fluminense e da seleção brasileira. Evocava, também, o célebre samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, aquele cujos versos prestam tributo à Estação Primeira de Mangueira. As duas referências eram uma chave para o recorte temático proposto pela nova casa: o futebol, a música brasileira, o Rio de Janeiro. Paixões do Rodrigo, que ele carreou para o projeto.
A Folha Seca funcionou ali por seis anos. Em 2003, um frequentador comentou com Rodrigo e Daniela que tinha visto um ótimo sobrado com placa de aluguel na Rua do Ouvidor. O desejo de abrir uma loja de portas voltadas para a rua era alimentado pela dupla já havia algum tempo e rapidamente o negócio andou.
Inaugurada sem grandes pompas no novo endereço, a Folha Seca foi aos poucos se consolidando como parada obrigatória para pesquisadores da história do Rio, do samba, das brasilidades. Mais do que isso, um ponto de encontro para conversas sobre esses e outros assuntos. Do livro recém-lançado à última rodada do campeonato, da conjuntura política ao resultado do jogo do bicho.
Quando a gente pensa no balcão de uma livraria, em geral a imagem que nos vem é de uma compra sendo efetuada. Na Folha Seca, é diferente. Seu balcão remete aos dos melhores bares. Pela cerveja que enche os copos americanos, logo esvaziados, mas sobretudo porque a troca que ali se dá não é financeira. Trocamos ideias, risadas, afetos. Um raro momento em que o dinheiro importa quase nada.
E é preciso lembrar: a Folha Seca ajudou a transformar completamente uma área que se encontrava em franca decadência. A outrora majestosa Ouvidor, a quem Joaquim Manuel de Macedo se referia como “a mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica de todas as ruas”, andava deserta, sem alma. Fiel à sua vocação musical, a livraria começou a promover rodas de samba e choro, e progressivamente a região voltou a ser ocupada. Ganhou a cidade, ganhamos nós.
Depois de algum tempo, Daniela foi trabalhar como editora e Rodrigo, que todo mundo só chama de Digão, passou a tocar o negócio sozinho. Na essência, nada mudou. O caricaturista Cassio Loredano continua batendo ponto lá, assim como o historiador Luiz Antonio Simas, o bandolinista Pedro Amorim, os jornalistas Ruy Castro, Álvaro Costa e Silva e Pedro Paulo Malta, a flautista Andrea Ernest Dias, o compositor Herminio Bello de Carvalho, a escritora Heloisa Seixas, o violonista e arranjador Maurício Carrilho. Eles e uma miríade de leitores ávidos por ensaios, romances, biografias, seletas de poemas, contos e crônicas — ou apenas algumas horas de prosa, um intervalo na correria cotidiana.
Neste sábado, dia 20 de janeiro, a livraria completa 20 anos no número 37 da Ouvidor. Duas décadas em que se entranhou profundamente nas nossas vidas. Gestou uma editora, um time de futebol, amizades que redundaram em canções, filmes e livros, muitos livros. Eu não poderia escrever minha história sem falar do que passei, e passo, dentro daqueles trinta metros quadrados que são um universo inteiro.
Foi o primeiro lugar que minha filha Lia, ainda bebê, visitou. Sua primeira saída de casa. Hoje com oito anos, ela volta e meia ainda pinta por lá. Entra na loja e logo sobe para o mezanino, onde ficam as obras voltadas para as crianças. Lia costuma dizer que a Folha Seca é a “minha” livraria. Respondo que “minha” é um termo restrito demais para um lugar como a Folha. Ali, o pronome pede o plural, sempre. Rodrigo imaginou uma Pasárgada carioca e esse sonho agora é nosso.