A cama elástica da prosa

A vida prosaica é o ponto de partida e também o ponto de chegada da prosa
Ilustração: João Verderame
19/01/2024

Aos dezesseis anos eu amava G., colega de escola, fascinada pela Comédia humana de Balzac. Aos dezoito, na faculdade, me apaixonei por K., que lia Adelaide Carraro, escondida da mãe. A leitura grudou em mim, na adolescência, porque a vida era devagar demais. As relações ao meu alcance, as pessoas à minha volta, comuns demais. Na sexta série, um colega repetente sugeriu Feliz ano velho:

— Leia, é demais!

Li e concordei: demais!

Há pubescentes que começam a usar maconha. Outros, como eu, leem livros sobre pessoas que usam maconha. Meu psicotrópico era a leitura: estimulante, alucinógena.

Foi na adolescência que passei da leitura passiva à leitura ativa. Além dos livros que escola e entes queridos recomendavam, eu poderia descobrir outros? Fuçando as bibliotecas, observando as capas, vendos títulos e passando os olhos por parágrafos de amostra (as primeiras linhas, uma página sorteada no meio) — eu descobria.

A dependência afetou minha vida social. Os livros moldavam minhas amizades: eu gostava apenas de quem lia também. Não serei leviana, aqui, ao comparar as dependências. Algumas destroem o fígado, outras fritam o cérebro; famílias se destroçam, talentos se arruínam. O vício na leitura não arruína (quase) ninguém. Ainda assim, identifico os sinais: aumento na tolerância, crises de abstinência, isolamento social, descontrole financeiro, negligência consigo mesmo. Preciso controlar a quantidade de livros que compro, do mesmo modo que, em outra época, precisei controlar as garrafas de vinho que consumia.

Para ser fiel à verdade, entretanto, preciso reconhecer também o oposto.

G., que amei aos dezesseis anos, acreditava em Jesus Cristo, e ria, com candura, quando eu discursava contra a opressão da igreja católica. Eu a amava por sua afeição a Balzac, ou pela pureza de sua fé? E K., por que me encantou? Além dos livros eróticos, teria sido, mais que tudo, seu olhar enviesado, me espiando meio de canto, altiva e desconfiada?

Paul Auster escreve, em Here and now, coletânea de cartas trocadas com Coetzee, que não tem amigos escritores — não gosta de conviver com escritores. Tento localizar a passagem, e não encontro. Leio apenas, nas primeiras páginas, que é amigo de um escritor mais velho — e nunca falam de seus livros, quando se encontram. Passam o tempo entre silêncios, resmungam. O trabalho literário de cada um não é assunto para conversação.

É que escrever sobre ler, ou escrever sobre pessoas que só leem, é um caminho arriscado para a pretensão ou erudição desinteressante. Mais puramente narrativo é escrever sobre a vida material — sobre gente errada e confusa, e seus tropeços notáveis. Assim, curiosamente, quem escreve aprende por bem do ofício a se afastar das letras. Por amor aos livros, voltamos ao mundo de que escapamos — a vida devagar demais, as pessoas comuns demais.

Minha mãe usa muito a palavra “prosaico”: na raiz, o adjetivo significa “escrito em prosa”, “da natureza da prosa”. Daí se estende o sentido de algo comum, trivial, corriqueiro — como registra o dicionário.

A vida prosaica é o ponto de partida e também o ponto de chegada da prosa — como uma cama elástica. Aliás, G., alguns anos atrás, instalou uma cama elástica no fundo de casa, para fazer ginástica. E K., com dois filhos, ouve podcasts de humor, enquanto dirige para o trabalho. Chegamos à meia-idade, distantes de nossas leituras de adolescência. Acompanho o autor de Feliz ano velho pelo Instagram. E hoje lerei o terceiro capítulo de A valise do professor, que começa com o encontro de duas pessoas solitárias, num bar, mais apegadas ao álcool que à vida comum.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho