Esta entrevista é pra você, que é de centro de estudos da linguagem, da loucademia paranaense de letras, do centro de estudos sei lá o quê, e só escreve “em âmbito”. Esta entrevista também foi feita para você, que nem sabe se usa “a nível de” ou “em âmbito”. Esta entrevista é praquele outro, o que quer falar da mesma maneira que se escreve. A entrevista também é pra você, que está lendo agora, que sabe o que é certo e o que é errado. A entrevista também pode ser lido por publiciOtários. E a entrevista também é pra quem está a fim de saber o que André Sant’Anna pensa a respeito da literatura contemporânea, da crítica, do Mario Sabino, do Marcelo Mirisola, do filme Tropa de Elite e de muitas outras coisas que o jornalista Marcio Renato dos Santos perguntou pra ele. A nível de, com vocês, André Sant’Anna.
• A nível de escritor que produz ficção no Brasil contemporâneo, como você avalia a sua geração ou então os autores que fazem ficção neste presente?
Acho que é uma geração de retomada. Durante algum tempo, mais especificamente, durante o tempo que foi do fim da ditadura militar, até o Nelson de Oliveira batizar a tal “Geração 90”, tinha-se a impressão de que não havia literatura brasileira, com uma exceção aqui, outra ali. Mas, claro, o pessoal estava escrevendo e sendo ignorado. Com o rótulo “Geração 90”, muita gente passou a “existir”.
• A nível de leitor, o que você acha das revistas e jornais que procuram cobrir, fazer resenhas e acompanhamento da produção literária contemporânea do Brasil? Os jornais, revistas, jornalistas, resenhistas dão conta de radiografar o que se produz?
Acho que, a partir desse renascimento da literatura brasileira, mais os blogs, mais os sites literários, a literatura ganhou certo espaço na mídia e tal. Mas esse espaço ainda é muito pequeno para uma crítica de verdade, então, fica tudo muito mais no campo da intriga, da fofoca, do gosto pessoal. Até redescobriram o Machado de Assis para que os resenhistas possam elogiar alguém. Mas não posso reclamar. Com o meu trabalho, a imprensa está sendo bastante generosa.
• A nível de observador, qual a relação entre os escritores e a suposta crítica deste Brasil contemporâneo?
Comecei a responder a esta questão na pergunta anterior. Penso que, em sua maioria, os críticos são também escritores, todos sempre sujeitos a se enquadrem em grupo ou contra um grupo. Sendo assim, o nível é bem baixo. Há uma certa TFP, que não admite uma literatura que não se encaixe em algum formato, gente que exige uma literatura que sirva apenas para contar histórias, há os que não admitem uma história, que viram a cara para qualquer coisa que não pareça experimental, há os que exigem textos enxutos e ágeis, há os defensores do hermetismo. E há aqueles que só admitem o Machado de Assis. Se o Machado de Assis fosse vivo, ia tomar porrada de tudo quanto é lado. Principalmente, acho que falta generosidade tanto aos críticos, quanto aos escritores. Embora eu tenha recebido elogios muito bacanas, gosto mesmo é quando o Xico Sá escreve que o meu livro “é do caralho”. Crítica de verdade deveria ter, no mínimo, uma página inteira de jornal, para que fique claro onde “fulano de tal derrapou”, ou quais são as irregularidades de tal livro, se os “transgressores” são “beletristas” ou “escrevem com desleixo”.
• A nível de curiosidade, você procura dar um cacete em coisas que te incomodam por meio da ficção? É isso que lemos em seus livros?
A raiva é, sim, o maior afrodisíaco para a minha literatura. Sexo e Amizade é um livro movido à raiva, a vinganças pessoais. Amor e O paraíso é bem bacana, nem tanto. São livros que falam de muitas coisas.
• A nível de política, qual a sua opinião sobre a performance do presidente Lula? E do George W. Bush?
O Lula foi uma grande frustração. Está fazendo um governo excelente para quem é muito rico, banqueiros, etc., um governo bom para quem é muito pobre. O negócio do Bolsa Família tirou muita gente da miséria, no Nordeste, apesar desse papo de que neguinho fica à toa, esperando a bolsa. Vi de perto como o Bolsa Família tira alguns pequenos povoados da lama e dá dignidade às famílias. Mas é medíocre para os pobres e péssimo para a classe média. Mas o Brasil continua o mesmo, talvez um pouco pior, em relação ao governo FHC, com o agravante de que algumas esperanças foram jogadas no lixo. E o pior de tudo é que o governo Lula encheu a canalha mais hedionda do Brasil de argumentos antiesquerdistas. Os inimigos ferozes do Lula são bem piores do que o Lula. Já o Bush é a escória política do planeta. O cara é totalmente débil mental. No entanto, enquanto o mundo fica vociferando contra o Bush, quem está por trás dele não é percebido. Tenho a impressão de que as pessoas acham que, saindo o Bush do governo americano, tudo vai se resolver. Mas o problema, a culpa, de tudo é o nosso velho conhecido, o comum. A culpa é do sistema.
• A nível de literatura, qual a sua opinião sobre a produção literária de Marcelo Mirisola? E do Daniel Galera? E do Nelson de Oliveira? E do Mario Sabino?
Gosto muito do Mirisola, que tira pedras preciosas da lama. A transformação do MM cafajeste dos primeiros livros, para o cordeirinho apaixonado pela Joana é excelente. A gente vê que o Mirisola tem fôlego para construir uma obra consistente. O Galera é muito bom também. A gente lê os livros dele achando que vai ficar naquela coisa de “literatura jovem” e o cara te dá as maiores rasteiras, te pega de surpresa toda hora. O Nelson escreve muito. Eu diria que escreve demais e em vários formatos diferentes, sendo assim, acho que tem momentos geniais, com momentos mais fraquinhos. Não conheço a literatura do Mario Sabino. Pessoas com quem compartilho meus gostos dizem até que é bom. Mas o cara não tem a menor noção de ética, de ridículo, não tem o menor caráter, é grosseiro com os outros escritores e vive se auto-elogiando, pagando as pessoas para escreverem bem de seus livros, na própria revista (Veja) onde é figurão. É um ser humano da pior qualidade e eu não conseguiria esquecer isso se por acaso fosse ler algo dele. Mas é aquela história: o cara pode ser péssimo caráter e bom escritor, sabe-se lá.
• A nível de vida pessoal, a literatura subsidia os seus gastos pessoais cotidianos?
A literatura não subsidia nada. Trabalho com publicidade, escrevo roteiros para televisão, etc. Não sou um escritor profissional, embora seja um profissional do texto.
• A nível de cotidiano, como é o seu?
Tenho uma rotina meio complicada, variável. Há épocas em que escrevo o tempo todo, que fico por conta da literatura, normalmente depois de ter feito um trabalho profissional bem remunerado. Há outras épocas, em que passo o dia em frente da TV, vendo tudo de futebol que aparece. Há épocas em que fico num emprego fixo, naquela rotina de horário comercial, restaurante de quilo no almoço, chegar em casa à noite e botar pijama. E esse conflito eterno: escrever literatura x ganhar o pão.
• A nível de pergunta clichê, quais foram os escritores que fizeram a sua cabeça?
Kurt Vonnegut, Jorge Mautner, José Agripino de Paula, Nelson Rodrigues, Glauber Rocha (os ensaios), Guimarães Rosa, Chacal, Sebastião Nunes, Rubem Fonseca, Ernest Becker (filosofia/psicologia)…
• A nível de cidade, por que você gosta tanto de São Paulo?
Não gosto tanto de São Paulo assim. Quando eu era adolescente e vivia no Rio, vir para São Paulo era como ir a uma Nova York imaginária. Eu era vidrado na música do pessoal da Vanguarda Paulista e coisa e tal. Depois, vivi muitos anos aqui em São Paulo, incomodado com a cidade, a sujeira, a poluição, aquela solidão que pintava quando eu ficava desempregado. Mas, hoje em dia, acho São Paulo uma cidade péssima, mas ótima. A feiúra de São Paulo tem o seu charme.
• A nível de intertextualidade, o fato de ser músico influencia na sua atividade de escritor?
Influencia totalmente. A cada livro, procuro usar um tipo de linguagem diferente e linguagem é música. Você acelera, você retarda, você organiza, depois desorganiza, improvisa, segue uma partitura preestabelecida, etc.
• A nível profissional, qual a sua opinião sobre a publicidade e os publicitários brasileiros?
Acho que a publicidade brasileira já foi bem melhor, quando havia uma promiscuidade dela com a arte. Depois, apareceu aquele papo de que “publicitário não é artista”, “que o povo é burro e por isso a gente não pode ser muito inteligente quando cria um comercial, ou um anúncio”. Há muito tempo não assisto a um comercial memorável na televisão. Quanto aos publicitários, tem de tudo no meio, desde os picaretas da pior espécie até gênios de verdade. Mas não vou dar nome aos bois. Eu vivo disso.
• A nível de audiovisual, qual a sua opinião sobre os filmes Tropa de elite e Meu nome não é Johnny?
Tropa de elite é um filme que reforça a mentalidade obscurantista que tomou conta dos brasileiros de todas as classes, aquele tipo de conversa: “pena de morte”, “diminuição da idade legal”, “a culpa da violência é dos maconheirinhos da praia”, “ou dos direitos humanos”, “o homem de bem tem direito a uma arma para se defender” e ainda sobram umas coisas do tipo “quem manda aqui em casa sou eu”. No começo, achei que era um filme excelente, com idéias fascistas. Mas depois, vendo as coisas que o Padilha anda dizendo, e até mesmo reparando a mudança paulatina do discurso dele, vi que o cara não tem a menor consciência do filme que fez. Claro, ele tem o direito de fazer o filme que quiser, mas o personagem que tortura favelados, espanca jovens maconheiros, que colocou na tela, é muito carismático, dá lições de moral quando, antes de torturar, diz que é e mostra que é honesto, diz que “é errado, mas não tem outro jeito”. Ou seja, o Padilha foi fiel a um texto de um policial honesto com idéias fascistas. O Padilha, dando entrevistas, não é um cara fascista. Ele é meio burro. O Johnny é um filme normal, acho que trata o problema da droga entre “a galera” de forma honesta e tal. Só que a moral da história, feita por aquela juíza no final do filme, é de lascar. Ela disse que “o caso de João Guilherme é a prova de que uma pessoa pode ser recuperada”. E a juíza concorda com os métodos de recuperação pelos quais passou o João Guilherme? Meu amigo: os idiotas venceram há muito tempo.