A realidade é bem bacana

André Sant’Anna apresenta críticas contundentes ao caos contemporâneo por meio de contos e longa narrativa
André Sant’Anna, autor de “Sexo e Amizade”
01/03/2008

A realidade se manifesta e incomoda André Sant’Anna. E André Sant’Anna reage. Com literatura. O caos acontece no mundo real. E André Sant’Anna recria esse caos por meio de enredos e linguagem. O caos gera, na realidade, personagens que representam funções que esses personagens talvez nem tenham consciência de que representem. André Sant’Anna observa esses personagens e os reelabora literariamente. Isso tudo, e mais, está nas páginas de Sexo e Amizade, livro recém-lançado pela Companhia das Letras. Sexo é uma longa narrativa publicada pela 7Letras em 1999. Amizade reúne 22 contos.

Os contos e a longa narrativa apresentam pontos de contato e parecem ser o mesmo texto, apesar de pequenas sutilezas. Os textos curtos e o longo se irmanam, entre outros detalhes, pelo fato de que apresentam personagens que representam, unicamente, aquilo que fazem (ou pensam fazer). No caso de Sexo, eles são apresentados ao leitor exatamente pela função que exercem e representam socialmente. São eles: O Executivo De Óculos Ray-Ban, O Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas, A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, O Chefe Da Expedição Da Firma, A Gorda Com Cheiro de Perfume Avon, O Gerente De Marketing Da Multinacional Que Fabricava Camisinha, O Negro, Que Fedia, O Negro, Que Não Fedia, etc. Todos podem se encontrar, e isso acontece, por exemplo, dentro de um elevador. Eles se encontram e, sobretudo, se desencontram devido às funções que representam — e assim o Negro, Que Fedia jamais terá relações com A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol. O Negro, Que Fedia terá contato apenas, por exemplo, com A Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos os Dias.

Os personagens de Amizade também são limitados como limitados são os personagens de Sexo. Mas em Amizade eles não são apresentados com iniciais em caixa alta pela função que representam como se dá em Sexo. Em Amizade há o motorista que dirige nas ruas de São Paulo um carro importado do Japão e sonha estar em Nova York, onde chove dinheiro. Em Amizade há um taxista que odeia mulheres no volante e faria de tudo para voltar à época da ditadura. Em Amizade também há um personagem narrador que representa literariamente a idéia que o autor faz de um policial da realidade — e isto representa um dos pontos altos do livro.

A lei, a exemplo da maioria dos contos de Amizade, é narrado em primeira pessoa e, neste caso, quem fala é um policial. “É que eu sou burro. Sabe por quê? Porque eu sou da polícia. E na polícia todo mundo é burro. Tem que ser burro para ser da polícia.” A narrativa faz uma leitura da ação da polícia no Brasil e procura refletir sobre o que leva uma pessoa a ingressar na corporação. “A gente nasceu pobre. A gente veio de uns lugares onde não tem a menor condição. Lá, nesses lugares horríveis, só dá três tipos de gente, a gente: bandido, polícia e otário. Os bandidos são os caras maus que têm coragem. Os polícias são os caras maus que são covardes, e os otários são o resto, são os bonzinhos que são covardes.” O personagem narrador não teria nenhuma condição de elaborar tais reflexões, como os demais personagens dos outros contos do livro. E aí entra um aspecto que credencia o livro a receber um adjetivo como interessante: o personagem tem consciência de que é o narrador quem articula o discurso:

Eu não sei nada disso, porque eu sou falso, eu não existo, eu sou apenas um personagem na primeira pessoa, um personagem muito estranho, que é burro, é da polícia. É que o autor deste texto, que sou eu mas não sou eu porque eu sou um burro da polícia igual a todos os outros burros da polícia já que na polícia todo mundo é burro e violento e é corrupto e é covarde, está, ele, o autor, que é legal, fazendo uma experiência. Ele está escrevendo literatura experimental, livres associações, esses recursos, sabe? Vanguarda. Metalinguagem. Essas porra.

André Sant’Anna não teme, por exemplo, a hipótese, remota que seja, de não vir a ser entendido. O texto literário requer leitores capazes de entender as sutilezas, a ironia, o sarcasmo enfim — por mais que isso soe e pareça pedante. Mas não há pedantismo. Há, sim, ironia. Tanta, que ele brinca, ainda no conto A lei, com a liberdade de optar por recursos coloquiais — ainda na voz do personagem narrador que é da polícia:

O certo seria dizer “a gente já nasce morta”, mas, com as palavras, quando é alguém que sabe escrever, que é profissional das palavras, esse, o que escreve, pode cometer esse erro de propósito, que é para o texto ficar mais natural, mais parecido com o jeito como as pessoas falam. É uma parada naturalista. E as pessoas, pessoas mesmo, falando, falam errado mesmo, sem problema. Por exemplo, quem fala, “eu a vi” é quem é burro mas acha que não é burro só porque usa corretamente regra gramatical. Quem sabe escrever de verdade não se importa. Quem tem segurança com as palavras, com a linguagem, escreve, fala, é “eu vi ela” mesmo. Eles, esses caras que têm segurança com as palavras, morrem de rir quando escrevem “eu vi ela” e o computador põe aquele sublinhado verde que avisa quando o cara que está escrevendo comete um erro gramatical.

André Sant’Anna quer, com a ficção, interferir na realidade. Ou então, rir da realidade, relativizar a realidade, reinventar a realidade, fazer da realidade outra realidade, quem sabe uma irrealidade — ou então, ele não quer nada disso: quer apenas escrever ficção, e escreve. A lei é uma crítica contundente contra a polícia, mas não apenas contra a polícia, nem contra os policiais — mas contra quem comanda as regras sociais e promove todas as atrocidades que vemos todos os dias (os chamados políticos, a classe dirigente). Amizade é grito contra os donos da situação. Mas não é ingênuo. André Sant’Anna ridiculariza a tudo e a todos. A mulher bonita que para alcançar seus objetivos deita em todas as camas na sua aventura de arrivista social. Os produtores culturais que procuram manipular artistas em benefício dos políticos. A produtora de televisão que pensa entender de comunicação. Os eco-chatos. O Japonês da IBM. O Adolescente Meio Hippie. A Adolescente Meio Hippie. A Vendedora De Roupas Jovens da Butique De Roupas Jovens. O Negro, Que Fedia. O Negro, Que Não Fedia. O Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas. O Leitor Do Jornal Rascunho. O Resenhista Do Jornal Rascunho. O Editor Do Jornal Rascunho. O Diagramador Do Jornal Rascunho. O Sujeito Que Nem Sabe Da Existência Do Jornal Rascunho.

E há tanto que não foi nem será comentado, nesta resenha, sobre o livro e o espaço já está chegando ao final e então há a alternativa de ainda preencher caracteres e, então, reproduzir na íntegra o conto Você tem que ser feliz!, publicado nas páginas 120 e 121 de Amizade, e então, enfim, somente então, finalmente, esta resenha chegará ao final:

E, para ser feliz, você tem que comer uma buceta, pelo menos uma. Não, melhor: você tem que comer um cu. Cu de mulher, que cu de homem é coisa de viado. Você é feliz, mas não é viado. É ou não é? E hoje em dia é fácil comer cu de mulher. Você pode até comer cu de artista. Mulher artista, digo. Homem artista sempre gostou de dar o cu, que homem artista é tudo viado. Mas, ultimamente, as mulheres artistas também estão gostando de dar o cu. Carnaval, então, aí é que as artistas dão o cu mesmo. É ou não é? Aí, você tem que aproveitar e comer os cus delas. Ou você já é feliz? Ou você é artista? Ou você é viado? Ou você é inglês? É que Carnaval, felicidade, arte, viado, Inglaterra, essas parada, tem tudo a ver com cu. É ou não é? Ou então é pra ganhar dinheiro. É ou não é? Então, meu amigo, vá à luta, coma cus de artistas e seja feliz. E você sabe como fazer isso. É ou não é? Você vai lá pra Salvador, ou Olinda, essas parada, toma um monte de negócio, tira a camisa, fica todo suado lá no meio do pessoal feliz, que sabe aproveitar a vida, e, na hora que você perceber a presença de uma mulher meio artista, exibindo a bunda, você chega junto, fala umas parada que homem que não é inglês fala, tipo assim: “Aí, que cuzão, hein!?”, ou então: “Porra, hoje eu vou comer esse cu aí, sua gostosa do caralho”, e aí a mina var ficar com a maior vontade de dar o cu pra você e aí você vai lá e come a porra do cu da artista e fica feliz que nem tem que ser no Carnaval: feliz! Praia também é bom pra você descolar um cu, cu de artista, cu de gostosa, que na praia as artistas ficam também todas com vontade de dar o cu. É ou não é? Você já viu os biquínis que elas usam? Claro, é tudo vontade de dar o cu. Aí, você chega junto, fala pra artista assim: “Que cu maravilhoso que você tem!”. Aí, é claro que a artista vai querer dar o cu pra você. Mas isso é melhor lá no Rio, que, na praia, só tem artista querendo dar o cu. É ou não é? São as artistas mesmo, essas da novela, que ganham um dinheiro pra completar o orçamento mostrando o cu nas revistas, naquela pose assim, que a bundinha fica empinada pra cima, olhando pra gente com aquela cara de quem gosta de dar o cu. Artista gosta que gosta de dar o cu. É ou não é? Mas, se você preferir, não coma nenhum cu de mulher artista e fique sofrendo em casa, vendo os cus das mulheres artistas que gostam de dar o cu, que vão estar felizes, mostrando o cu no Carnaval da televisão, onde todo mundo é muito feliz querendo dar o cu, os artistas.

LEIA ENTREVISTA COM ANDRÉ SANT’ANNA 

Sexo e Amizade
André Sant’Anna
Companhias das Letras
280 págs.
André Sant’Anna
Nasceu em Belo Horizonte (MG) em 1964. Viveu no Rio de Janeiro, período em que, entre outras ações, tocava no grupo Tao e Qual. Atualmente reside na capital paulista. É autor, escritor, entre outros, dos livros Amor, Sexo e O paraíso é bem bacana.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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