Vida após a morte

Em "As viúvas passam bem", Marta Barbosa Stephens explora as contradições humanas e a busca por algum sentido na vida
Marta Barbosa Stephens, autora de “As viúvas passam bem”
01/01/2024

A publicação de um segundo romance é aguardada com antecipação. Em certos casos existe a expectativa de alcançar um público leitor maior. Em outros, se a primeira obra obteve grande sucesso, há a dúvida se o novo livro realizará o mesmo feito. Mais comum, entretanto, é o interesse da crítica pela elucidação do projeto literário em construção. Com a leitura do segundo livro, é possível averiguar os fios de ligação entre ele e o anterior, compreendendo-se temas e estratégias de escrita caras ao autor. Tal é o caso de As viúvas passam bem, romance mais recente de Marta Barbosa Stephens.

Situado no Recife dos anos 1990, As viúvas passam bem, finalista do Prêmio LeYa de 2021, narra a história de Margarete e Guiomar, duas mulheres tornadas inimigas após seus maridos se matarem durante uma discussão. Vizinhas, as viúvas realizam pequenas e bizarras vinganças uma contra a outra, marcando o cotidiano da pequena vila — “A história delas era um patrimônio público no bairro”. O romance é conduzido em primeira pessoa por uma narradora não nomeada, que escreve suas memórias adolescentes de Margarete e Guiomar. Neste sentido, há elos importantes entre o livro e Desamores da portuguesa, primeiro romance de Stephens, que confirmam aspectos de interesse na escrita da autora: a estrutura narrativa em que a narradora escreve histórias que escutou e a figuração de personagens em busca de algum sentido na vida. Características que, ao que tudo indica, serão recorrentes na sua literatura.

Desconfiança e afeto
Uma narradora suspeita ocupa o centro de As viúvas passam bem. Há tempos a literatura deixou de lado o narrador tradicional, dono de toda razão e inquestionável. Na produção contemporânea, eventos são narrados por sujeitos parciais, indecisos e mentirosos. O papel do leitor passou a ser desconfiar e questionar quem narra. Essa é a postura possível perante narradores como, por exemplo, o paranoico Daniel, de Teatro, de Bernardo Carvalho, ou a ambivalente Shirley Marlone, de Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna. Indivíduos cujas visões dos eventos não são completamente confiáveis. Em As viúvas passam bem, Stephens constrói a descrença através de uma narradora com memória falha.

O que descrevo a seguir, permita-me alertar, tem origem no olhar de uma menina de 13 anos, abobalhada pelas descobertas de sua idade e curiosa por tudo o que não lhe era familiar. Possivelmente, muita coisa foi fantasiada. Não posso me assegurar de toda a verdade com tantos anos de distância. Ainda mais por ter sido uma adolescente presa no mundo paralelo das histórias e personagens que criava, e só eu via.

O distanciamento temporal é maneira conhecida de gerar dúvidas sobre as recordações de um narrador. Lacunar, a memória se torna mais imprecisa com o tempo. As lembranças da narradora de As viúvas passam bem são figuradas como incertas porque décadas separam os acontecimentos e o momento de escrita. A caracterização da personagem como imaginativa desde a juventude dá outra dobra à descrença por parte do leitor. O mais intrigante é tais características serem apresentadas abertamente. No romance, a desconfiança não é construída aos poucos, pois de largada a narradora declara não ter nenhum compromisso com a veracidade do relato.

A dubiedade da palavra da narradora oferece maior liberdade a Stephens na construção da narrativa. A estrutura de uma narradora que escreve lembranças sobre a vida alheia também está presente em Desamores da portuguesa. Lá, ela conta dos encontros com uma portuguesa que desabafa sobre desilusões amorosas. Em dado momento, o enredo se expande para tratar de outras mulheres para além da portuguesa. O movimento é desajeitado, outras histórias dificilmente encaixando-se dentro da estreita estrutura narrativa. Com uma narradora distanciada no tempo dos acontecimentos e que fabula abertamente, As viúvas passam bem escapa de tal restrição.

O enredo do romance se amplia para apresentar sujeitos ao redor das viúvas. A expansão é feita de maneira hábil. Com menções a comentários de outros personagens, entende-se que a história é composta pela recordação de eventos presenciados pela narradora e por boatos difundidos entre os moradores da vila. “Nunca parei de saber delas”, a narradora informa ao leitor, “nem mesmo quando deixei o Recife e me casei em São Paulo”. Desse modo, a estrutura narrativa possibilita a Stephens representar a intimidade não só das viúvas, mas também de outros personagens.

Com a figuração das relações entre as protagonistas e outros indivíduos, Stephens tematiza a importância das conexões humanas. Após o falecimento dos maridos, Margarete e Guiomar passam por um processo de descoberta de si. Quem são elas fora do casamento? Ódio e vingança são os motivos encontrados para continuarem a viver em um primeiro momento, mas logo se mostram limitantes. O sentido da vida passa por outro lugar.

As viúvas passam bem é um romance sobre afeto. É na troca com o outro que o renascimento das viúvas ocorre. E é também na relação com elas que esses outros sujeitos se encontram. Contudo, Stephens não trata do tema de maneira simplista. O amor, romântico ou não, no livro é plasmado como confuso e contraditório. A obra demonstra como é possível, por exemplo, que mãe e filho se amem, mas não se gostem, ou que desejos e expectativas em um relacionamento mudem ao longo do tempo, tornando-se o oposto do que eram no início.

Ao representar as relações humanas como complexas, Stephens evade qualquer maniqueísmo. Os personagens do romance são gentis, mas também mesquinhos e rancorosos. Eles se importam com quem amam ao mesmo tempo que são profundamente egoístas. E por serem contraditórios conquistam a empatia do leitor. Em tempos em que um certo moralismo afeta o meio literário, As viúvas passam bem exemplifica como a literatura mais interessante ainda está na exploração das contradições humanas.

As viúvas passam bem
Marta Barbosa Stephens
Folhas de Relva
124 págs.
Marta Barbosa Stephens
É jornalista e crítica literária com mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Nasceu no Recife (PE) e mora na Inglaterra. É autora de Voo luminoso de alma sonhadora (2013) e Desamores da portuguesa (2015). Tem contos publicados em diversas coletâneas, entre elas Feliz aniversário, Clarice (2020) .
Allysson Casais

Doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

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