Bécassine, a babá dos sonhos

As andanças por São Paulo podem transformar a cronista em uma criada ou em uma sofisticada representante da União Europeia
Ilustração: Eduardo Mussi
22/12/2023

Estamos, meu amigo e eu, almoçando tarde numa sexta-feira, depois de duas bancas de avaliação da faculdade. Fechamos os diários de classe, digitamos notas, entregamos relatórios de orientação. Hoje avaliei os alunos dele; semana passada, ele avaliou os meus. Participei de nove bancas de graduação, no início de dezembro. No dia seguinte a cada uma, me enviam a foto de comemoração: todos em pé — alunos, orientadores, avaliadores — em frente ao telão com o título do trabalho.

Na hora da foto, sempre dou um passinho pra trás, em relação ao grupo. Um dia me passaram essa dica: se você é grande, retroceder um tantinho ajuda a disfarçar. Quando vejo as fotos, meu primeiro impulso é checar: será que pareço muito volumosa? Fico aliviada quando me diluo no conjunto.

Um namorado, muito tempo atrás, me chamava de Bécassine — a “babá dos sonhos”. A criada que vem da província para cuidar da filha de uma família parisiense. A serva de quadris largos, pernas firmes, braços fortes. O volume corporal é uma pista do seu trabalho e da comida que você come. Não é barato ser esguia. Se fosse mais magra, eu pareceria mais rica.

Mas ainda não penso nisso, na sexta-feira, no almoço. Foram as últimas bancas do ano. Olho o cardápio — estressada, pediria provavelmente um prato-conforto: uma massa, um hambúrguer, um prazer calórico para compensar o desgaste. Hoje estou tranquila; peço um peixe grelhado com legumes.

Meu amigo pede o que lhe apetece. Comemos, tomamos café. Falamos da imprensa literária, das boas e más resenhas que lemos recentemente. As que falam demais do assunto, pouco da forma. As superficiais, as empoladas. Resenhas que provocam réplicas e tréplicas, e comentários nas redes sociais — a polêmica ajuda a vender os livros? Ou a treta é o foco, e o livro se torna dispensável?

Sentados, à mesa, conversamos sobre ideias, descansamos de nossas características identitárias. Amizades raras, pra mim, hoje. Pessoas que conversam sobre literatura durante o dia, nos intervalos do trabalho, bebendo apenas água com gás.

Depois de pagar a conta (cada um, sua parte), seguimos em direções diferentes, para nossos compromissos. Terei uma reuniãozinha rápida no fim da tarde — que, felizmente, não é sobre aulas nem notas. Será no centro. Tenho quarenta minutos, posso descer a pé. Conheço todas as vias, do espigão da Paulista até a praça da República. Escolho as ruas silenciosas, mesmo que precise desviar algumas quadras pra evitar a avenida.

Atravesso um pequeno parque, onde jovens tomam sol sobre a grama. Cruzo uma praça acimentada, que costuma ter skatistas, mas agora está vazia. Quase chegando ao endereço da minha reunião, pela calçada, ao longo de uma padaria e um bistrô, vejo se aproximar uma travesti, com seu cachorrinho de estimação.

Ela vem de havaianas, calção jeans super curto, e uma blusinha surrada. É alta — da minha altura — com um corpo bonito, atlético. Vem meio rebolando, com seu vira-latinha branco e peludo, que passaria bem por um fox terrier.

Não era óbvio que ela fosse pedir dinheiro — mas, quando me vê, ela pede. Às vezes levo notas pequenas nos bolsos, para esses casos. Raramente abro a bolsa numa calçada, na cidade. Hoje não tenho nada preparado. Mas a moça tão alegre — e a solidariedade LGBT+ — me desarmam. Alcanço a carteira, tento pegar uma nota de cinco, e no movimento vem junto uma de vinte. Paciência; vamos lá. Dou os vinte e cinco reais à moça. Ela se entusiasma:

— Obrigada, União Europeia! — é como me agradece.

Nos círculos refinados, meu grande corpo branco faz lembrar uma criada.

No centro de São Paulo, represento o bloco europeu.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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