Novela-Folhetim: História do fim do mundo (Fim)

Capítulo final do folhetim "A história do fim do mundo", de Miguel Sanches Neto
Ilustração: Marco Jacobsen
01/04/2009

Separação

1.
Não havia mais a diferença entre a cidade e seus arredores, tudo um único território unido pelo asfalto, e assim o sertão dava a impressão de inexistir quando natanael voltou à cidade de carro para visitar a família, fazendo o contorno no trevo, diante do velho rolo-compressor de asfalto que, orgulho da cidade, fora colocado ali como símbolo da nova urbe, e esta máquina, chamada de maria fumaça, se elevara à condição de peça de museu numa região de desbravamento recente, onde tudo ocorrera de forma vertiginosa, e, agora, entrando na rua em que fora criado, e onde sua família ainda morava, natanael não encontrava mais o movimento de antes, os agricultores tinham ido embora, a área rural era quase toda mecanizada, a cidade enfim melhorara, mas encolhera, e isso também tinha uma versão autobiográfica, tornando tudo mais doloroso para natanael, que reencontrava a rua completamente esvaziada das pessoas de sua infância, mas ali estava a casa de sueli, a primeira que ele via, o carro agora em marcha lenta, depois das centenas de quilômetros em alta velocidade, e tudo seria lentidão dali para frente, sueli tinha se casado com um fazendeiro local e morava sozinha com a filha em um apartamento em outra cidade, enquanto o marido passava os dias na fazenda, levando vida de solteiro, e isso desde a primeira semana depois do casamento, o que virou um escândalo, pois voltando da lua de mel no nordeste, na primeira noite na casa nova, construída para receber o casal, ele fora visto na zona, onde passou a noite nos braços de uma prostituta estropiada, talvez deixando claro para a mulher e para todos que não seria marido exemplar, talvez nem marido quisesse ser, e logo sueli se mudaria, raramente aparecendo para visitar a avó, que ainda estava viva e forte, como sua feição imutável, o eterno cabelo branco, as roupas com os mesmos cortes de anos atrás, só sua casa fora modificada, a parte de baixo da madeira, que devia ter apodrecido pelo contato com o chão, acabou substituída por uma mureta de alvenaria, e ninguém diria que aquela fora a casa das sereias, mas natanael guardava uma lembrança dela, da época em que joanides já não morava no quiosque, ele passou no armazém com um carrinho de mão, transportando pedaços de madeiras e outras coisas encontradas nos lixos, para mostrar a natanael um tesouro, uma das sereias de madeira, faltando apenas parte da cauda, e os olhos de natanael brilharam de tal forma ao ver aquela escultura que joanides, sem pensar, ofereceu o objeto, natanael tentou pagar, mas joanides não aceitou, pela primeira vez possuía algo cobiçado, e dar aquele pedaço de sereia era selar uma amizade, e quando natanael se mudou para cursar economia na capital levou junto a escultura, que hoje fica num canto da sala, com seu rosto feminino e lírico que foi com o tempo adquirindo os traços de sueli, substituindo-a em sua memória, e, em mais de uma vez, quando se masturbava em sua cama de solteiro, era pensando no corpo ausente de sueli, tirado da escultura da sereia, um corpo que ele nunca viu, mas que desejou mais do que todos os outros que passaram por sua cama, e ao ver a casa ali, com a mureta de concreto de mais ou menos meio metro, e o resto da parede de madeira, era como se a própria casa, por outros caminhos, restaurasse a condição de sereia, e natanael então olhava o outro lado da rua, onde morara salomão, a casa fora mantida idêntica ao velhos tempos, nem pintura recebera, sendo alugada de tempos em tempos para novos inquilinos, que não cuidavam dela, e isso importava pouco para salomão, que perdera os pais, bem mais velhos do que ele, e agora era vendedor em são paulo, recebendo mensalmente ralos dividendos de um tempo e um lugar aos quais jamais retornara, e o carro então avançava mais e ele descobria algumas casas, todas novas e indiferentes, até ver a casa dos pietro, na verdade uma casa nova, de alvenaria, ainda sem reboco, apenas chapiscada, e que estava sendo construída aos poucos por luiz, para que a mãe vivesse em paz com a filha caçula e o marido completamente alheado do mundo, que gastava os dias sentado numa cadeira na varanda da casa com gradil de ferros pontiagudos, tendo sobrado daquele tempo só as telhas francesas que guardavam o encardido do tempo, e nesta casa nova, de poucos quartos, dona jerusa recebia seu novo homem, bem mais moço do que ela, tudo com a aprovação dos filhos, que, no passado, batiam no pai todas as vezes que ele, um pouco mais bêbado do que o normal, começava a falar que a mulher era uma cadela, não sabia quais daqueles filhos eram dele, sempre teve homens, e então caia sobre ele a ira dos filhos de dona jerusa: não fale assim da mãe, seu velho porco, e agora, quando o amante jovem aparecia, passando pelo marido em sua eterna cadeira, ele quase já não sofria, tinha aprendido a viver apenas do sol que tomava ali, da comida que lhe serviam num prato fundo e das lembranças da época em que se estabelecera na rua como próspero comerciante, o casamento com uma moça trabalhadeira, tinham sido anos felizes aqueles, e algumas vezes o velho sorria em sua cadeira, mesmo na presença do outro.

2.
A casa de adonias sofrera tamanha mudança que natanael dificilmente a reconheceria se não soubesse sua localização na rua, e foi diante dela que ele parou, sabia o que iria encontrar ali, por isso desceu do carro fazendo lentamente o percurso até o portão, a casa tinha um gradil alto, os vitrôs grandes e baixos que natanael conhecia tão bem, e não só ele, foram trocados por venezianas de madeira, pintadas de marrom com tinta a óleo, e o quintal de árvores era agora um gramado, onde havia um balanço colorido, tudo tão distante daquela outra casa, até o telhado sofrera alterações, e ele apertou o interfone e ouviu uma voz feminina, identificou-se e logo sua irmã apareceu no quintal, e atrás dela vinha sua sobrinha de cinco anos, assustada com a presença do tio que ela só conhecia de ouvir falar e de fotos, e depois de duas voltas na fechadura do portão, enquanto trocavam saudações, eles se abraçaram, natanael mentiu dizendo que ela estava linda, embora tenha se assustado com sua gordura, ela dizendo que ele não mudara nada, mas tinha mudado sim, os primeiros fios de cabelo branco apareceriam nas laterais de sua cabeleira baixa, cortada no velho estilo militar, então os dois caminharam como um casal, o marido chegando de viagem e tomando nos braços a filha, e ele se lembrou que devia ter trazido algum presente, planejando em breve corrigir isso, e quando entraram na sala ele não reconheceu nada também na parte interna, e neste seu retorno à casa onde começou sua viagem pelas mulheres, a mais longa de todas as viagens, que nunca teria fim, ele queria alguma conexão com o passado, e sentaram-se à mesa, paula falou da filha, do marido que era fotógrafo na cidade, vivia em batizados e casamentos, e natanael então perguntou: e velórios, e ela riu, dos mortos não encomendavam fotos, e ele então contou que esse era um hábito antigo: os familiares mandavam fotografar o morto no caixão e depois distribuíam as fotos em monóculos de plástico, para lembrar nem tanto o morto, mas a morte de cada um, a mãe tinha muitos desses monóculos na mala sobre o guarda-roupa, onde ela deixava as lembranças que lhe dávamos nas festas, cartões pintados por nós mesmos sobre desenhos reproduzidos no mimeógrafo a álcool, e por falar em morto, natanael continuou, como foi a morte do adonias, sofreu muito no final, ele perguntou, e paula mandou a filha para a sala de tevê, depois começou a contar: ele tinha vivido todos aqueles anos esperando madalena, não fazia frete nenhum, apenas bebia e dormia, durante o dia na rede da varanda, à noite no sofá da sala, acordava bêbado perguntando se madalena tinha voltado, e gritava: é você, madalena, e diante do silêncio, voltava a dormir, nunca se conformou com a fuga, a mãe mandava a empregada trazer um prato de comida para ele, tinha até um prato próprio, que a mãe guardava embaixo da pia, e natanael se lembrou do tremendão e do mesmo costume da mãe, ela pertencia a um mundo que não se alterava, e paula continuou: depois de comer, ele deixava o prato no muro de divisa dos dois quintais, e os pássaros pousavam ali para catar os grãos de arroz e outros restos, e me dava uma tristeza ver aquele prato antigo, com uma colher dentro, natanael pensava que adonias também aceitara comer o resto de outros, tudo que ele esperava é que lhe devolvessem a mulher, jamais sairia de perto dela, alimentando-se para sempre das migalhas, e natanael se sentiu mal, com remorso, e os irmãos ficaram em silêncio, um vazio de palavras que foi interrompido pelo chamado da menina: venha aqui ver um desenho na tevê, mamãe, e aliviados os dois foram juntos, a disposição dos cômodos era a mesma, as mudanças alteraram apenas a superfície, e ele entrou no antigo quarto de visita, onde estivera tantas vezes em suas madrugadas de sexo, era agora a sala de tevê, e para facilitar a vida das duas mulheres que reinavam na casa, além da estante com o aparelho enorme de televisão, os dois sofás, ainda havia uma pequena geladeira, para que elas pudessem alcançar comida e bebida sem precisar ir à cozinha, era a sala de tevê ideal, e sentados, numa fraternidade que nunca existiu antes entre os irmãos, ficaram vendo televisão, natanael meio em transe, pensando em madalena, hoje deveria estar gorda e velha, e teve vontade de rever a mulher que se abriu para ele como alguém que abre o portão do presídio e diz: olhe, eis o mundo, tomai-o e percorrei-o, e nesta entrega, neste ato de comunhão, ele tinha participado da vida de toda a rua, pois os homens minimamente viris também freqüentavam aquele corpo, e por meio dele natanael sempre pertenceria à gente de sua rua, nunca deixaria de ser um dos homens de madalena, tal como também fora o seu próprio pai, e isto era uma comunhão mais forte entre ele e jerônimo do que qualquer outra que tivesse existido antes, e pensando nestas coisas natanael olhou para a parede com pintura nova, e reconheceu uma velha rachadura, bem maior e mais larga do que antes, sinal de que o tudo continuava em movimento, criando distâncias, que poderiam ser maiores ou menores, e ficou olhando a rachadura que o ligava àquele outro tempo, a um outro uso do cômodo, pensando quantas coisas não guardavam as paredes daquele quarto, e percebendo que o irmão não tirava os olhos da rachadura, paula falou: tentamos de todo o jeito encobrir esta rachadura, mas não foi possível, e natanael apenas murmurou: nunca é possível.

3.
Tinha planejado não chegar num dia de semana, com o armazém aberto, pois teria de parar ali para conversar com a mãe, e o reencontro seria público, com testemunhas, e ele não se sentiria voltando para casa, por isso chegara num domingo pela manhã, de surpresa, e deixara o carro na frente da casa de madalena, aquela nunca seria a casa de paula, a irmã era uma intrusa naquele local, que para ele figurava como uma versão doméstica de bordel, tantos cabaços tinham sido extintos ali, madalena devorara os homens que passaram na sua frente, e os fazia felizes porque sabia mentir, contando histórias de amor para dar alguma nobreza às sacanagens que faziam apenas por desejo baixo, e ele então deixou aquela casa, consciente de que nunca a deixaria de fato, e caminhou até a frente do barracão, encontrando o mesmo letreiro na fachada de madeira, a mãe nunca construíra o prédio novo, logo o movimento começou a diminuir, os agricultores foram embora, os grandes fazendeiros e os sitiantes só entregavam suas safras às cooperativas, que financiavam as lavouras, e com isso o comércio foi enfraquecendo, e para não fechar as portas prudenciana reduziu a cerealista a uma mercearia, e vendia apenas mantimentos para os moradores da região, quase todos ex-agricultores que vieram para a cidade, para morar nos vários conjuntos de casas populares inaugurados por sucessivas administrações, e que formavam um mar de casinhas de um branco encardido, avançando pela zona antes rural, e era do dinheiro dessa gente pobre que prudenciana agora vivia, natanael pensava nisso tudo enquanto contornava o armazém e, pela lateral, chegava ao portão da casa, as trepadeiras tinham recoberto todo o muro, não eram mais de maracujá, mas de uma flor feia, e a folhagem de um verde escuro desaparecia sob o pó da cidade, que continuava o mesmo, sempre subindo com o vento e com o deslocamento dos carros para se depositar sobre tudo, e natanael teve que bater palmas no portão, ali não havia campainha, e viu a mãe aparecer com o mesmo andar, as mesmas roupas, os mesmos chinelos, era como se o tempo estivesse paralisado, e prudenciana tremia ao abrir o portão, soltando suspiros profundos, o filho não sabia se de alegria ou de depressão, então ela abraçou o antigo menino e disse que ele estava muito magro, que não andava se alimentando direito, teria que passar umas semanas com ela para recobrar a cor e o peso, e foram caminhando abraçados pelo jardim, rumo à casa de outrora, que nem pintura recebera, e os móveis também não haviam mudado, e ele encontrou na árvore em frente à porta de entrada o papagaio, repetindo frases de sua infância, outro era o bicho mas, como aquele era um mundo imóvel, nada se alterava, e natanael sentiu algum conforto por saber que tudo podia se modificar, mas naquele lugar algo era para sempre, e entraram na cozinha, com os móveis de antes, e também as louças, e um cheiro de alho e cebola, natanael sentou-se na mesa, a mãe trouxe um café: sim, eu ainda torro o grão, depois môo e preparo o café adoçando a água na chaleira e passando no coador de flanela, que eu mesma costuro, ela explicou, sentando-se ao lado do filho e também bebendo uma xícara do café forte e bem doce, e então ele perguntou de jerônimo, ela pôs a xícara na mesa, e começou a contar, tinha voltado muito magro, viera de carona, comendo o que as pessoas lhe davam, não ia mentir para ela, disse-lhe quando chegou, tinha sido feliz enquanto foi possível, ele gostava ainda de madalena, e viveram coisas muitos bonitas juntos, mas logo ela começou a sair com outros homens, no começo ele não se importou, ela era jovem, tinha lá as necessidades dela, e ele ficava em casa, limpava tudo, lavava a roupa dos dois, identificando a presença dos outros, mas isso não importava e sim que havia carinho entre eles, e jerônimo gostava de preparar uma comida especial, ele, que nunca nem fritara um ovo antes, súbito aprendeu a cozinhar e fazia as receitas mais difíceis, ela comia bastante, retribuindo com carinhos, e assim viveram os primeiros anos, até que o dinheiro dele acabou, jerônimo não tinha profissão, mesmo que tivesse ninguém daria emprego a alguém na idade dele, e ela foi obrigada a trabalhar, por sorte arranjou serviço numa fábrica de malhas, madalena havia aprendido a costurar com prudenciana, e isso manteve os dois por um tempo: eu várias vezes pensava em você, prudenciana, por causa de seus ensinamentos tínhamos o que comer, mas madalena foi cada vez se habituando mais a comer fora, eu parei de cozinhar, preparava um sanduíche, fazia um macarrão rápido, e ficava em casa vendo tevê a noite toda, pois ela começou a não dormir em casa, dizia na minha cara que estava saindo com o gerente da fábrica, para eu não ficar preocupado, o outro era pai de dois filhos com uma mulher mais nova do que ela, e muito mais bonita, ele só quer variar um pouco, ou matar a curiosidade, é isso que os homens buscam, não é, jerônimo, ele imitou a voz de madalena, disse prudenciana, contando que, depois desta fase, a bandida sumiu por um mês, descobriria que se divertindo numa praia com o amante e com as duas filhas dela, ele passou fome neste período, ela não deixara dinheiro, então vendeu a televisão, e fez o mercado para ficar esperando, e quando ela voltou, como se, saído de manhã para ir trabalhar, tivesse se atrasado meia hora, jerônimo chorou, não de ódio, mas de emoção, madalena ainda gostava dele, se preocupava com ele, ali estava a prova, depois de tanto tempo na companhia de um homem bem mais jovem, depois de ter experimentado as delícias da praia, ela voltara e isso significava que o amava, e ela então lhe deu dinheiro pedindo para que fizesse um jantar especial, e ele foi ao mercado e voltou com carne, verduras, enlatados, e um vinho, e se esmerou nas receitas mais complicadas, e beberam o vinho juntos, enquanto ele cozinhava, saciados, foram para cama e ele possuiu seu corpo bronzeado, com as marcas do biquíni e pensou que tudo valia a pena para provar daquele corpo, e sentiu o sal do mar nele, e a brisa e a proximidade com os peixes, que tinham dado uma aspereza saudável à pele, ele contava tudo isso para dizer a prudenciana que estava de volta não porque não tivesse sido feliz, foram os melhores anos de sua vida, mas agora tinha sido abandonado, madalena fora morar com o gerente, e o expulsou da casa, era ela quem pagava o aluguel, volte ao lugar de onde nunca devia ter saído, foi com estas palavras que ela me expulsou, deixando na mesa, antes de sair para o trabalho, o dinheiro para o ônibus, não queria me ver ali ao chegar do serviço, já apareceria com o amante, que o colocaria para fora à força, e jerônimo partiu sem levar nem as roupas velhas nem o dinheiro, saiu caminhando, sem rumo, chegou à rodovia, conseguiu carona, e de cidade em cidade, dormindo em postos, comendo os restos que lhe davam, cumpria a ordem de madalena, voltava para casa, não para ser de novo o marido, não merecia, desejava somente um lugar para dormir, um prato de comida, faria pequenos serviços, não tinha mais força para grandes tarefas, e prudenciana, na noite de sua chegada, não o deixou entrar em casa, levando um colchão ao armazém, onde ele passou a morar, gastando o dia no quintal da sua antiga casa, onde cuida de uma horta e limpa o jardim, quase como um caseiro, e depois de ouvir esta história toda, natanael recebeu a ordem da mãe: vá lá nos fundos falar com ele, ainda é seu pai, e ele encontrou um velho aguando um canteiro de alface, eles se olharam e o filho teve dó do pai que parecia um avô de cabelos de paina, o tempo passava muito mais rápido para quem deixava a casa.

4.
Tinha regressado não para diminuir a distância entre ele e aquele mundo, mas para descobrir a extensão desta distância, não poderia mais ficar ali, e fazia apenas três dias que chegara, o suficiente para que não se encontrasse naquela casa parada no tempo, na cidade que assumira outra feição sendo, no fundo, a mesma, descobrindo que não se passa de novo na rua da infância, e pouco tinha sobrado daqueles outros tempos, restava seguir em frente, era esta a regra, sempre adiante, e ele então arrumou a pequena mala no bagageiro, pouco tinha conversado com jerônimo, que vivia à sombra de um amor impossível, o pai não se abrira com ele, tal como fizera com a ex-mulher, e a razão deste seu retraimento era óbvia, o filho era um dos homens de madalena, os dois disputavam a memória do amor da mesma mulher, embora jerônimo devesse sentir um gosto de vitória, tinha passado dias felizes com ela, o amor que o filho conquistara era roubado enquanto o dele tinha sido uma posse, ilegítima mas plena, pelo menos por um tempo, e esta rivalidade de memórias afastou os dois neste reencontro, mas na hora da partida o pai se aproximou do filho com um saco plástico, usado para adubo, e o colocou no porta-malas, dizendo que colhera algumas frutas e umas abóboras, e este presente vindo de um quintal cultivado por jerônimo era mais um constrangimento entre os dois, não adiantava dizer que comia em restaurantes, não aproveitaria nada daquilo, jogaria fora no caminho, ele preferiu não decepcionar o pai, que lhe dava as únicas coisas que eram suas, aquilo tinha sido cultivado por ele, embora o terreno, a água e o adubo não lhe pertencessem, e natanael abraçou o pai pela primeira vez, e lembrou dos ensinamentos dele sobre as três coisas que punham um homem a perder, bebida jogo mulher, e estava ali a prova do que uma mulher podia fazer num homem, e natanael olhou a mãe, triste naquela despedida, e pensou que uma mulher estragava não apenas o homem, mas o mundo todo, e a própria solidão de natanael era mais uma prova disso, ele fugia não de sua rua, de sua casa, mas de madalena-sueli, e continuaria fugindo indefinidamente delas, que eram quase uma pessoa só, e foi pensando nisso que entrou no carro, disse adeus da janela aberta, deu a partida e saiu, virando na frente do armazém para pegar a avenida vila rica, que estava vazia naquela manhã de terça-feira, havia apenas um ciclista na rua, natanael passou por ele ao colocar a segunda marcha, olhou pelo retrovisor e reconheceu joanides, o mesmo sorriso honesto, e teve então de parar, eles se abraçaram como velhos amigos, e fizeram as velhas perguntas, joanides disse que tinha se casado, a mulher esperava o segundo filho, moravam numa das casinhas de conjunto, graças a deus estava empregado, a mãe morrera e manassés fora assassinado quando tentava roubar um banco, enfim, a vida, joanides disse, rindo, a vida que não perdoa nada mas que não dá uma cruz maior do que aquela que a gente possa suportar, ele ainda falou, natanael não tinha muito o que dizer, a mãe contava no armazém o que o filho fazia na capital, e joanides demonstrou saber dos detalhes de tudo, mas ele queria dizer algo que alegrasse o amigo: sabe que eu ainda guardo a sereia de madeira que você me deu, e sempre penso nos amigos quando olho para ela, e então joanides riu, ele sabia exatamente em quem natanael pensava ao olhar a sereia, mas tudo que disse foi uma frase estranha: pena que aqui não tenha mais mar, e natanael então se lembrou de se despedir, desejando felicidade ao amigo e pensando na frase, tinha sim havido um mar ali, ao menos na imaginação do escultor, na imaginação daquelas crianças que sonhavam com a praia, mas tudo isso desaparecera, aquele era um mundo morto, ele continuou em primeira até chegar no trevo, olhou a casa de sueli, lembrando que não se despedira da casa de madalena, depois ficou olhando a maria fumaça no centro do trevo, e foi então alcançado por joanides, eles se olharam e riram para aquela maquinaria velha e enferrujada, onde estava pintado o nome da cidade, e o amigo disse ter saudades das ruas de terra, e dos velhos programas de televisão, natanael olhou mais uma vez para o rolo-compressor, posicionado na direção de foz do iguaçu, rumo ao centro protegido do continente, e sem se despedir de novo tomou o outro sentido da rodovia, que o devolveria à vizinhança do mar, e, depois de vencer uma pequena elevação, seu carro desapareceu de uma vez, como se tivesse caído num precipício.

FIM

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho