A redenção das espécies

A solidão da vida moderna e suas consequências guiam os personagens de "Um cão no meio do caminho", de Isabela Figueiredo
Isabela Figueiredo, autora de “Um cão no meio do caminho”
01/12/2023

Que a solidão esteja diretamente relacionada à contração de doenças e propensões ao suicídio não é novidade, mas que ela se imbrique estreitamente à derrocada da democracia, pode, ou ao menos deveria, acender um alerta. Assim é que a portuguesa Ana Margarida de Carvalho começa por compor um retrato da solidão em Portugal nos dias de hoje. Em Viver só: portugueses esmagadoramente sós, volume que integra a série Retratos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (2023), a autora explora os dados do Censo provisório de 2021, segundo o qual são já mais de um milhão o número de pessoas nessa situação, ou seja, o dobro de há 30 anos. Lemos nas primeiras páginas:

Solitários por vocação, autónomos por predisposição, celibatários por aptidão, isolados por circunstâncias, infortúnios vários, perenes, ocasionais ou transitórios … Este livro é dedicado às 1.027.924 pessoas que vivem sós em Portugal.

A meio de um interessante parágrafo, a escritora traz à tona o paradoxal desgaste dos laços que nos unem uns aos outros justamente neste século da comunicação e o quanto esta “aparente contradição”, nas suas palavras, pode colocar em xeque a própria democracia, isso porque, afirma ela:

Pessoas solitárias, marginalizadas, abandonadas, desenraizadas, desconfiadas, desesperadas por pertencer a qualquer comunidade ou tribo que as acolha — essas pessoas tornam-se vulneráveis e manipuláveis, um eleitorado fácil para candidatos populistas.

Desde o uso de uma linguagem direcionada a esta audiência específica, a exploração de teorias conspirativas, a instigar medo e fomentar lógicas bélicas, até a promoção de nacionalismos simplórios e a exclusão de imigrantes, são os meios utilizados por tais candidatos, prossegue a autora, como forma de criar naqueles que os apoiam um sentido de pertencimento.

Aos ouvidos brasileiros, a leitura faz um forte eco sobretudo ao fatídico ano eleitoral de 2018. Ano composto por dias marcados ainda pelo brutal assassinato da vereadora Mariele Franco e de seu motorista Anderson Gomes, seguidos da prisão do então ex-presidente Lula em Curitiba.

Mas, ao eleger Bolsonaro, o Brasil tinha acabado de se incendiar. Passava a ser presidido por uma subespécie de jagunço legalmente eleito. Tinha mesmo acontecido. Estava feito. O que sobraria do Brasil após a queimada infértil? Para não passarmos a ser governados por jagunços é preciso estar atentos, estar alerta. E o povo não está. Escolhemos líderes sob o efeito de promessas falsas, vezes sem conta, sem aprender a experiência.

São as palavras de José Viriato, protagonista de Um cão no meio do caminho, o mais recente romance de Isabela Figueiredo. Assim pensa a personagem enquanto escuta as primeiras notícias da manhã, uma retrospectiva de 2018 a passar na televisão do bar onde esperava pelo café naquele último dia do ano.

Afastando-se do perfil autobiográfico dos seus dois anteriores romances — Caderno de memórias coloniais e A gorda —, Isabela Figueiredo, nascida em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, retornou a Portugal em 1975, pela primeira vez, dá uma vida às personagens que não é a sua: marcada pela experiência daqueles quase meio milhão de portugueses/as que tiveram de regressar a Portugal no contexto das guerras pelas independências em África, e que ficaram conhecidos como retornados. A questão dos retornados, contudo, não deixa de ser perseguida pela autora. Em Um cão no meio do caminho, eles também estão presentes, agora, porém, na figura das crianças, contemporâneas da infância de José Viriato, de modo que, se por um lado a escritora se afasta de uma autoficcionalização da sua experiência, por outro, não abandona o interesse literário pelo tema, este que, dentre outros, a História de Portugal parece não querer enfrentar.

A solidão
Pela voz do protagonista José Viriato, morador da Margem Sul de Lisboa, que vive na companhia de seus dois cães e se ocupa de reciclagem e da revenda de descartes, o romance joga luz sobre as histórias de quem vive só. Trata-se de uma história de amizade, paulatinamente construída entre José Viriato e sua vizinha Beatriz, conhecida pela alcunha de Matadora, uma mulher que também vive sozinha, em meio a tudo o que só uma acumuladora consegue guardar. São duas personagens que, não suportando a ideia do descarte total de objetos, metaforicamente não conseguem abandonar o passado. Não seria arriscado dizer que é um livro sobre as vidas solitárias, mas mais que isso, sem cair em clichês e metáforas repisadas, a autora constrói uma história de redenção, no sentido mais necessário que esses tempos de “fim de mundo” requerem. E qual seria?

Primeiro, a problemática em torno do próprio futuro da vida humana abordada pela autora por meio da complexa questão do lixo, da acumulação, dos fetiches obsoletos de uma sociedade desesperadamente consumista, e as relações humanas em meio a isso: a solidão, as pessoas excluídas nas cidades segregadas, o ter em detrimento do ser. Que a redenção aconteça Quando as espécies se encontram, para lembrar o título do livro de Donna Haraway, cuja proposta ressoa neste romance, marca não apenas uma escolha de vida da própria autora, mas a possibilidade que o plano ficcional apresenta de outros caminhos, alternativos, em meio a um devastador neoliberalismo.

As vidas se unem, cuidam-se, importam-se, mas não se trata de um final romanticamente feliz, porque nem sequer há indicação deste tipo de relação entre Beatriz e José Viriato. O que sobressai do romance é de fato uma possibilidade daquilo que bell hooks propõe acerca de viver uma ética amorosa, pautada sobretudo pelo compromisso e responsabilidade com o outro, com os outros, um cuidado que se volta para a preservação da vida digna e que, nesse sentido, está longe de se limitar a relações unicamente entre homens e mulheres, envolvendo o cuidado com tudo e todos entre os quais estamos. Há, enfim, um encontro, um pertencimento.

Um cão no meio do caminho
Isabela Figueiredo
Todavia
236 págs.
Isabela Figueiredo
Nasceu em 1963 em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique, mudando-se para Portugal em 1975. Publicou, em 2009, Caderno de memórias coloniais, livro central da experiência pós-colonial focado em sua infância africana. A gorda, seu primeiro romance, foi sucesso de público e de crítica.
Bianca Rosina Mattia

É doutoranda em literatura Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pesquisa sobre a obra do escritor José Saramago na linha Crítica Feminista e Estudos de Gênero.

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