Dez anos atrás, um amigo jornalista, sempre atualizado na fogueira das vaidades do mundo literário, me indicou um roman à clef. A trama do livro, de aparência leve e até inofensiva, faria alusão a certas pessoas e certos eventos recentes. Meses depois, ele me indicou outro. Foi um ano repleto de fofocas culturais disfarçadas.
Eu não frequentava festivais literários (até hoje, frequento pouco). No fundo, tinha pouca condição de saber se as indiretas se referiam mesmo a um caso real, ou eram pura ficção. Mas fofoca inofensiva é como Ajinomoto — realça o sabor. As histórias ficaram na minha cabeça. Às vezes eu lembrava, sem motivo; há uma leveza em polêmicas antigas.
Passou-se o tempo e finalmente, neste ano, decidi usar algumas crônicas da última década em sala de aula. Como é sempre recomendável ter uma base teórica, busquei também artigos acadêmicos sobre cronistas nacionais contemporâneos. E assim, em meio a uma semana qualquer do segundo semestre, reencontro uma daquelas polêmicas, agora analisada por um doutorando, com citações e referências bibliográficas.
Na crônica incendiária, tema do artigo, a autora defendia seu direito de praticar “o mais feroz preconceito sem manifestar sombra de culpa”. A liberdade que reivindicava era a de “ignorar certos títulos e antipatizar de antemão com alguns autores por motivos nada objetivos”.
A frase é provocativa se soubermos a quem se refere. Se considerarmos apenas sua essência — abstrata — soa até bem razoável. Num mundo cheio de livros, como encontraríamos nosso caminho sem exercer “o mais feroz preconceito”? Para decidir o que ler, decidimos, ao mesmo tempo, o que não ler. Em literatura somos como o Jerry da comédia Seinfeld. Abandonamos namoradas pelos mais ínfimos defeitos — mãos grandes, risada estranha, nudez fora de hora.
Na verdade, simpatizo com “nãos”.
Em alguma conversa perdida, numa tarde qualquer, alguém me disse: “Quando diz não a alguém, você diz sim a si mesma”. Máxima despretensiosa e verdadeira: o alívio do não. Me deixem em paz: não.
Quando começava a escrever, depois de ouvir muitos “nãos”, prometi a mim mesma que seria sempre gentil com outros principiantes. Assim como jurei que sempre daria caronas, quando tivesse um carro, pois conhecia o sofrimento de horas espremida ou esperando ônibus. Cumpri as duas promessas, por anos. Até me dar conta que manter um carro dava trabalho demais.
Ser atenciosa consome energia. Ser rude — e ignorar — é um forma de egoísmo, mas pode ser também uma forma de proteção.
Um personagem de quadrinhos, meu favorito na juventude, dizia: “Viagens são inúteis. Tudo é mais bonito na fotografia”. E uma amiga certa vez comentou, sobre outra colega nossa: “Se quiser falar com ela, você terá de ir à casa dela. Porque ela não vai mais a lugar nenhum”. Esse me pareceu o maior elogio que se pode fazer a alguém: “ela não vai mais a lugar nenhum”.
É pela necessidade de isolamento, talvez, que me alegro com polêmicas passadas. Sozinha em casa, lendo, pouco importa se uma briga é de ontem ou de quinze anos atrás. Das brigas reais, eu me esquivo — como o carteiro Jaiminho, quero evitar a fadiga. E mesmo a palavra “preconceito” já uso pouco, pois pressupõe um “conceito”, e eu, no climatério, nem concebo mais nada.
Quanto à palavra “feroz”, sim. Gosto de ideias ferozes.