Deserto particular

"Cantos de contar" traz uma caprichada seleção de poemas de Alberto da Cunha Melo, que faria 70 anos em 2012
Alberto da Cunha Melo por Theo Szczepanski
01/11/2012

Os pernambucanos costumam assumir sua tradição bairrista, seja com humor ou afetada seriedade. Entre brincadeiras ou discursos, lembram que a cidade de Jaboatão dos Guararapes é “berço da pátria”, porque lá foram travadas as batalhas decisivas para expulsão dos holandeses; que Olinda tem o melhor e mais democrático Carnaval do Brasil, enquanto Caruaru detém a coroa das festas juninas; que Nova Jerusalém é o maior teatro ao ar livre do mundo; que o Santa Cruz Futebol clube possui a torcida mais fiel do País, que o Estado realiza o festival de cinema recordista em presença de público…

1966 cabe como prato cheio, quando assunto é literatura. Naquele ano, o octogenário pernambucano Manuel Bandeira recebeu homenagens e viu reunidas todas as suas poesias em Estrela da vida inteira; João Cabral de Melo Neto publicou Educação pela pedra, e Osman Lins, Nove novena. Foi também quando Hermilo Borba Filho lançou Margem de lembranças, primeiro romance da tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência.

Ao lado desses nomes já conhecidos e respeitados, o novato Alberto da Cunha Melo chegava com seu livro de estréia, Círculo cósmico, que, agora, pode ser parcialmente encontrado em Cantos de contar — seleta que traz ainda poemas das obras Publicação do corpo, Oração pelo poema e Poemas anteriores.

Mais do que um marco individual, o livro de Alberto foi também o primeiro do chamado Grupo de Jaboatão, do qual faziam parte ainda Domingos Alexandre, Jaci Bezerra e José Luiz de Almeida. E, assim como os poemas veiculados na mídia, o livro só foi possível pelo entusiasmo de César Leal, editor no Diário de Pernambuco, cuja atenção foi conquistada desde o primeiro contato — um bilhete no qual os rapazes dividiam alguns princípios estéticos e a expectativa de terem seus escritos apreciados pelo jornalista e crítico literário.

O Grupo é capítulo fundamental para os interessados na chamada Geração 65, que, com o passar dos anos, tornou-se rótulo de um orbe indecifrável, estância que foi inchando e perdendo qualquer possibilidade de ser razoavelmente descrita e teorizada. Hoje, com a imprecisão que o assunto merece, pode-se dizer que se entendem como integrantes da Geração quase todos os poetas pernambucanos (ou radicados) que produziram entre as décadas de 60 e 80. Foram poucos os que negaram a filiação, afirmando-se independentes ou pertencentes a outros círculos.

O Grupo de Jaboatão, por outro lado, eram uns poucos moços de origem simples, suburbanos, do proletariado ou da mais apertada classe média. Reuniam-se para ir aos eventos culturais, para trocar ideias sobre arte, opiniões sobre seus escritos. Eram avessos aos modismos estéticos e ao diletantismo literário. Em tempos de ditadura, faziam da poesia e de seus encontros um instrumento de reflexão social e resistência.

São dessa fase os versos escolhidos para Cantos de contar, livro caprichadíssimo, resultado do esmero da Editora Paés e da participação zelosa no projeto de Cláudia Cordeiro, viúva e pesquisadora da obra de Alberto da Cunha Melo. É dela o longo texto introdutório, além da idéia de publicar também os desenhos feitos pelo autor. O livro tem uma bela capa dura, com detalhe em relevo, além de papel especial e um anexo importante: respostas do poeta às perguntas de Alfredo Bosi, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, Jose Nêumanne Pinto, Alcir Pécora e outros dez entrevistadores.

Justa homenagem aos 70 anos que Alberto teria completado em abril, não houvesse partido em 2007. Como pequena ressalva, registre-se somente que não existem referências à publicação original de cada poema. E, para lamentar, fica a modesta distribuição, que torna o livro um tanto caro (R$ 80,00) e de difícil acesso (fora de Pernambuco, está disponível no site e nas lojas da Cultura).

Para ler Alberto
Dois outros livros de poesia de Alberto da Cunha Melo estão em catálogo: Dois caminhos e uma oração (2003) e O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos (2006). Estas publicações da editora Girafa, mais o Soma dos sumos, que saiu pela José Olympio em 1983, são as únicas obras que tiveram distribuição nacional. Na citada entrevista, que fecha o recente Cantos de contar, o autor comentou:

(…) o restante só teve mesmo alguns exemplares expostos e vendidos na livraria Livro 7, aqui no Recife, hoje extinta. A província continua sendo cercada pelo que chamo num poema de horizonte de guilhotinas, escrevemos aqui, distribuímos por aqui e morremos aqui, esquecidos do resto do Brasil.

O modesto respiro para além das fronteiras da província deve muito à admiração empolgadamente declarada de Alfredo Bosi e Bruno Tolentino — no caso deste, admiração que se tornou quase uma militância, não desperdiçando oportunidade alguma de defender o lugar destacado de Alberto da Cunha Melo na literatura brasileira.

Sobre os poemas narrativos de Yacala, prefaciando a segunda tiragem do livro, Bosi escreveu sobre “a estranha beleza que sai dos versos”, da “fusão de um visceral sentimento da terra” com a aspiração infinita de quem está “Mirando o mar e altas distâncias/ numa luneta de escoteiro”. A grandeza está no abraço entre a “experiência funda do sofrimento, cuja origem é inequivocamente social”, e a câmara de ressonância que é a “capacidade própria da linguagem poética de tudo passar pelo crivo da consciência pessoal”.

Sobre o mesmo Yacala, Tolentino foi bem mais efusivo: “Leiam e confiram, meninos, eu li, vi e ouvi o caso mais espetacular de alta poesia narrativa em nossa lira desde o canto de morte do imortal Timbira. E olha que por aí já vão quase século e meio…”.

Daí em diante, quando críticos e jornalistas se dispuseram a escrever sobre Alberto, os elogios foram cada vez mais extremados. Parece não bastar qualquer análise, é preciso puxar os cabelos do bardo até que ele esteja muito acima de seus contemporâneos. Celebram sua “absoluta originalidade” (expressão tão falsa quanto gasta, seja qual for o autor vitimado), derramam lugares-comuns como “autêntico”, “sensível” e “marcante”, fazem questão de elencar os poucos grandes poetas capazes de dividir degrau com o pernambucano no panteão dos maiores da literatura de língua portuguesa.

Alberto se tornou outro desses casos curiosos, de escritores que residem entre o notável desconhecimento da maioria do público leitor e o reconhecimento desmesurado por parte de seus exegetas. Não raro, essa admiração se vale de tiradas quase religiosas, em um messianismo poético que não deixa de ser a tomada de partido pelos valores estéticos que Alberto defendeu com impressionante coerência, durante meio século de poesia.

Alguns dos afagos chegam realmente sem beiras, são comentários-berros, de trincar taças, e terminam destoando da poesia e do modo de ser de Alberto da Cunha Melo, tão avesso ao histrionismo. Soam mesmo como turistas grosseiros que trocam exaltadas opiniões dentro de um museu, como se estivessem no mercado público. Em vez de elevá-la, chocam-se indelicadamente com a lembrança de alguém que exemplificou sua poética com os versos de Ribeiro Couto:

Minha poesia é toda mansa
não gesticulo, não me exalto,
meu tormento sem esperança
tem o pudor de falar alto.

Fases da resistência
Os três livros disponíveis são amostras importantes da poesia de Alberto, são janelas que dão para fases distintas de sua permanente inquietude. EmCantos de contar, o leitor encontra a primeira delas, de ritmo atípico, com seus versos octossílabos distribuídos em cinco quartetos, sem rima, que requerem tempo e dedicação. E dificilmente qualquer apresentação será mais acertada do que o próprio poema Cartão de visita:

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.

Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.

Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.

É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.

Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.

Além do fazer poético, estão presentes outros temas recorrentes em sua obra, como a morte, o tempo e o cotidiano. Mas é também o período mais subjetivo de Alberto, com motivos como infância, família e a própria memória. Daí ter caído tão bem a decisão de Cláudia Cordeiro de reproduzir 50 desenhos feitos pelo poeta entre 2000 e 2002, criando uma aproximação entre leitor e autor como em nenhuma outra de suas publicações.

Cantos de contar contém um terço dos poemas escritos entre 1960 e 1974. Depois, ainda em tempos de ditadura, Alberto começou sua segunda e mais engajada fase, com Dez poemas políticos e Noticiário (ambos de 1979), obras em que deixou seu horrorizado testemunho sobre o cotidiano. Neles, deu-se a adoção dos versos livres (que o poeta considerava ainda menos libertos). Foram as ocasiões, contudo, em que mais se distanciou daquela poética com “pudor de falar alto”. Mesmo com toda a maturidade, toda sua consciência de que, sob a aparente liberdade, outras demandas formais permaneciam — mesmo fazendo uso de muito mais recursos estilísticos, ele não conseguiu a mesma qualidade alcançada nas demais estações. Apesar da empolgação com a qual foram recebidos pelos companheiros de geração, o distanciamento fez esses livros perderem bastante de seu impacto.

Dois caminhos e uma oração(2003) reúne Oração pelo poema — que pertence à primeira fase — e duas das obras mais festejadas pela crítica: Yacala e Meditação sob os lajedos. Títulos que surgiram do retorno aos octossílabos rimados e com a forma fixa que o poeta chamou de retranca (alusão ao esquema tático do futebol), com um quarteto, um dístico, um terceto, e mais um dístico. São empresas que, como ressalta Isabel de Andrade Moliterno (na tese Imagens, reverberações na poesia de Alberto da Cunha Melo: uma leitura estilística), continuam a busca do “raciocínio lírico compacto”, da “perfeita fusão entre forma e conteúdo”.

Apesar dos comentadores citarem bem mais o texto de Bosi, em que a poesia de Alberto da Cunha Melo responde pelo nome secreto resistência, é de autoria de Mário Hélio o mais esclarecedor dos prefácios. Contrariando algumas leituras mais apressadas, este alerta que ninguém encontrará no poeta os “mimos da transcendência”, mas, sim, o “cotidiano feito de agonias perpétuas”, onde se corre “o drama da relação do homem com o outro, consigo mesmo ou com o destino (tenha este o nome de Deus, Sorte, Azar, Fatalidade ou qualquer outro que se queira)”.

O engenho do poeta possibilita que, apesar de Meditação sob os lajedos oferecer tanto sofrimento, desengano e morte, os poemas atraiam o leitor, cubram-no com manto que, embora não acalente ou ofereça saída, termina por aprisioná-lo, como preso está o poeta à sua desditosa condição humana, à “terra saqueada”

onde uma vida, por mais breve,
dura sempre mais do que deve.

O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos (2006), por sua vez, tão próximo ao encantamento do poeta, anunciava fase que não chegou a se desenrolar, em que ele decidiu recriar a forma fixa japonesa renka, no que chamou de “uma delével homenagem a uma forma poética extinta”. Como sempre, o bardo pernambucano decerto investiria tempo considerável neste novo projeto, que estava fundado no “problema fundamental da poesia”, o paralelismo.

Entre o grifo e os lugares-comuns
Celebrar a originalidade como diferenciador canônico em Alberto da Cunha Melo é um despropósito. Como processo, todo poema é devedor. Nenhum estilo (para acionar outro tópico controverso) está divorciado das tradições, ancestrais ou vindouras; quando maior a rebelião, talvez ainda maior seja o laço. Já como realização total, qualquer poesia é única, fenômeno irrepetível, porque resultado da técnica, da memória-condição do poeta, do contexto, da recepção etc. Ou, como bem melhor escreveu Octavio Paz, em O arco e a lira,

Cada poema é único. Em cada poeta lateja, com maior ou menor intensidade, toda a poesia. Portanto, a leitura de um só poema nos revelará, com maior certeza do que qualquer investigação histórica ou filológica, o que é a poesia.

Dentre esses escritores irrepetíveis, e ao mesmo tempo devedores (que são todos), se críticos e teóricos destacam alguns como divisores e canônicos é porque a existência desses autores (comum/única) parece ter influenciado o meio literário (ou além) com intensidade que lhes parece mais aguda (ainda que suas assertivas nem costumem ser unânimes, nem tenham permanência garantida). Disparidade que não nos parece ser o caso de Alberto da Cunha Melo.

Sobre outro lugar-comum, sim, ele resistiu aos modismos estéticos, à condição de “autor da província”, à pobreza, às desditas. Mas, se nem todos os poetas precisam ou se dispõem a tanto, também é verdade que a poesia, essa “outra voz”, sempre foi justamente lugar de resistência, a guerrilha de uma “imensa minoria”.

Mais ou menos original, se resistiu em maior ou menor grau, se buscou conciliar dimensões, lidar com dor e beleza, terra e estrelas, morte e imanência, nada disso fez de Alberto da Cunha Melo um poeta acima dos demais. Embora tudo isso tenha corroborado para fazer de Alberto um grande poeta.

“A vontade de mudança sempre aconteceu em minha poesia, mas só depois do esgotamento de uma forma escolhida, depois de acreditar que nada mais ela podia me dar”, ele disse, dividindo com os entrevistadores sua exaustiva relação com as feras, com os “grifos domésticos” que elegia para se expressar. Conteúdo e forma sob a lona, dia após dia, Alberto e suas feras gastaram cinco décadas na procura da expressão artística, neoclássica, construtivista, de encontrar o “âmago cósmico” das coisas. Ter alcançado ou não a “beleza plena”, ter sido ou não “absolutamente original”, pouco importa, porque a busca, os riscos e o abismo em redor contam mais.

E Alberto conseguiu viajar essa intransigente cruzada sem perder a capacidade de se comunicar com o leitor. Seus versos, por mais cultos e trabalhados, por mais metafísicos que eventualmente se proponham, são claros o suficiente para evitar qualquer hermetismo. São, todavia, camadas diferentes de clareza. Do mesmo modo que a beleza conquistada por Alberto, como não é absoluta, como não é aquela substância essencial perseguida (nem poderia ser), permite-se ser recebida em partes-momentos diferentes. O leitor apressado não sai ileso de seus poemas, algo o comove desde o primeiro encontro. Existem, porém, outras belezas que cobram tempo e interesse, que solicitam repetidas visitas, principalmente nos octossílabos selecionados para o Cantos de contar.

Os trabalhos da Girafa e da Paés, bem como a dedicação de Cláudia Cordeiro na administração da sua obra poética, garantiram possibilidades de encontro com o poeta-leitor Alberto da Cunha Melo, porque o mesmo explicou:

O gosto do fruidor é, para mim, o único juízo sincero da obra de arte. Em arte, considero bom aquilo que eu gostaria de fazer. Julgo bom, portanto, o poema que gostaria de ter escrito. Toda a minha luta literária reduz-se à tentativa de escrever a poesia que eu gostaria de ler.

Resta a expectativa de que muitos outros queiram e possam ter acesso a essa poesia que Alberto sempre quis ler, e que tentou realizar, mesmo quando nenhum sacrifício a mais lhe parecia ser possível.

Alberto da Cunha Melo
O escritor, sociólogo e jornalista Alberto da Cunha Melo (08/04/1942 – 13/10/2007) nasceu em Jaboatão dos Guararapes (PE). Neto e filho de poetas, é sempre lembrando como participante do que o historiador Tadeu Rocha batizou de Geração 65. Trabalhou por 11 anos na Fundação Joaquim Nabuco. Foi editor no Jornal do Commercio (Recife), colaborador do Jornal da Tarde (São Paulo) e colunista da revista Continente. Também ocupou por duas vezes a Diretoria de Assuntos Culturais da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco.
Cristiano Ramos
Rascunho