Retorno sentimentalista

Simplório e maniqueísta, "Páginas sem glória" revela-se muito aquém da esmerada literatura de Sérgio Sant’Anna
Sérgio Sant’Anna por Ramon Muniz
01/11/2012

Sérgio Sant’Anna está entre os autores mais interessantes e importantes da literatura brasileira, sendo possível até deixar de complementar esta última expressão com o esperado adjetivo “contemporânea”. Nenhum outro prosador de nossas letras explorou de maneira tão deliberada, contínua e profunda os limites da forma literária, expondo com enorme habilidade artística, argúcia intelectual e clareza invejável os andaimes por trás do texto e do fenômeno artístico/narrativo. Seu trabalho de metalinguagem vai muito além de uma fachada postiça de auto-questionamento e atinge o cerne (vazio e fértil) daquilo que ao mesmo tempo monta e desmonta em suas composições: a obra literária.

O último livro de contos de Sant’Anna foi o merecidamente premiado O vôo da madrugada, de 2003, em que o autor revisitou com entonação particularmente soturna e sombria algumas de suas obsessões anteriores, como amor, morte, suicídio, solidão, artificialidade da forma literária e também de outras formas (de comportamento, de pensamento, etc.). Pensando o livro anterior a este, Um crime delicado, como uma espécie de culminação daquilo que sua obra vinha desenvolvendo, e seu último livro de contos como uma espécie de dénouement do clímax visto no livro anterior, é com certa curiosidade que o leitor contínuo dos livros de Sant’Anna chega a estes novos textos. No bizarro O livro de Praga, lançado no ano passado, o fetichismo estranhamente se tornou a tônica dominante e alienou muitos de seus leitores, mas era possível ainda atribuir a fraqueza ou atipicidade do texto a sua participação no projeto Amores Expressos. Ainda que o tema do projeto fosse bastante amplo, há um mínimo de tolhimento da espontaneidade produtiva individual do autor. Considerando o grande intervalo entre o Vôo e esta obra mais recente, não é com poucas expectativas que o entusiasta da obra de Sant’Anna abre estas Páginas sem glória.

O livro é constituído de dois contos e uma novela: Entre as linhas, O milagre de Jesus e a novela-título, textos de aproximadamente 20, 40 e 100 páginas, respectivamente. Encontramos aqui, portanto, o Sant’Anna das narrativas estendidas, como em O monstro ou Breve história do espírito, sem a concisão de diversos dos textos de O vôo da madrugada e de coletâneas mais antigas.

Jogo de espelhos
A primeira narrativa é a mais interessante: temos uma breve introdução do narrador explicando que enviou uma novela de sua autoria a uma amiga querendo ouvir dela uma opinião sobre o texto. Ela pede para não ser interrompida na explanação do que achou da história, e no resto do texto temos somente sua fala, explicando o que pensou. O leitor não tem acesso ao texto original, tudo o que conhecemos dele (seus personagens, emoções, situações e dilemas) é pelos olhos e pensamento da amiga do escritor, que lê, interpreta, questiona e se emociona com algo que para o leitor não existe. A narrativa criticada que conseguimos entrever é a história de um escritor e suas neuroses amorosas com uma mulher pela qual é apaixonado, mas que, a contragosto, não tem uma relação monogâmica.

É um jogo de espelhos que o leitor dos livros de Sant’Anna pode já tomar como típico: um conto que é um escritor ouvindo a opinião sobre um conto sobre um escritor, e todas as declinações que se consegue tirar daí, a apreensão das coisas indissociável do processo interpretativo que é sempre, ou quase sempre, tendencioso. Trata-se de uma espécie de reestruturação ou reencenação muito interessante do romance Um crime delicado, a voz de crítica ou da crítica narrando, tomando a dianteira sobre qualquer mimese dos acontecimentos.

Além do conturbado relacionamento do personagem-personagem-escritor (ou o personagem-escritor da novela escrita pelo personagem-escritor da introdução do conto que lemos), acompanhamos também a crítica da leitora de certos momentos nostálgicos da novela que leu — um menino que sobe em um carrossel e se apaixona, uma imagem que surge e ressurge durante a narrativa. A opinião dela expressa uma ambigüidade de compaixão e condenação que reconhece o que há de kitsch e de sentimentalismo na recuperação destes momentos de infância (ou na própria idéia de tentar falar de amor, um discurso contaminado por um mundo povoado de idéias simplórias e simplificadas sobre o assunto) e que ainda assim se comove com estas imagens e tentativas. Ela admite que chorou durante a leitura deste trecho e, ao admitir, solta uma gargalhada, na dificuldade relativamente típica da sofisticação em lidar com coisas básicas e inexplicáveis.

Melodrama
Este sentimentalismo e queda para o kitsch aparece com mais força ainda, chegando a ser excessiva, no segundo conto do livro, O milagre de Jesus. A disposição do texto na página é semelhante à de um roteiro de teatro, em que o personagem fala com o seu nome pré-posto diante de suas palavras — mas as palavras são predominantemente as do protagonista, um mendigo homônimo de Cristo, de barba e cabelo cortados de forma semelhante à iconografia cristã consagrada, e que conta uma história marcante a seu amigo de nome Francisco. O albergue em que dormia é fechado por conta do fracasso do prefeito em se reeleger e, ao rondar as ruas, o protagonista acaba, meio que por acaso, entrando em uma igreja. Após ser rudemente interpelado pelo padre, que lhe diz que o lugar de esmolar é na rua e que seria expulso se causasse qualquer transtorno ou inconveniência, Jesus se ajoelha em um dos bancos do fundo e uma senhora que sofre de grave deformidade física se aproxima dele, convencida de que se trata de uma aparição divina colocada ali para ajudá-la em seu dilema insuportável.

É difícil elogiar este conto de forma tão irrestrita quanto o primeiro, ainda que seja fácil encontrar vários dos tropos recorrentes na obra do autor interessantemente reaproveitados: a questão do teatral, a formatação da escrita no conto, a forma como o mendigo acaba por interpretar Jesus (e mesmo sendo encenação acaba produzindo efeitos como se real fosse), certa “espiritualidade atéia” sendo explorada, o reconhecimento de que a rejeição das instituições e dos dogmas das religiões consagradas não prescinde de aceitar a existência de diversos mistérios. Já se disse que a arte é uma forma de religião decaída, uma espécie de religião sem Deus definido, e Sant’Anna já tem isto explorado em outros contos de forma interessante.

No entanto, a coisa aqui adquire tons igualmente desagradáveis ou de melodrama ou de farsa. O dilema pessoal apresentado é cruel demais para um tratamento abertamente farsesco, mas o registro sério também acaba por derrapar em exageros sentimentais e surpreendentemente simplórios para um autor tão sofisticado quanto Sant’Anna. Tão simplório que registra o que pela minha memória deve ser uma novidade na obra deste contista, uma figura vilã sem qualquer complexidade: um escritor que conseguiu fugir do maniqueísmo vigente no meio intelectual nos anos da ditadura militar cria um padre achatadamente mau e totalmente desinteressante, como se estivéssemos, de repente, lendo alguma obra de denúncia social do realismo português do século 19. É possível que releituras futuras desvendem desdobramentos de algum interesse sobre este aspecto exagerado do sentimentalismo, mas por enquanto o que resta ao leitor de primeira viagem é a discussão de uma cineasta amadora no final do conto sobre qual imagem refletir nas lágrimas de Jesus perto do final da história. Sim, a coisa é neste nível.

Tédio
O terceiro texto conta a história de um talentoso jogador de futebol no Rio de Janeiro dos anos 50, certa recriação de um momento e lugares históricos. Trata-se do texto literário mais entediante e desinteressante que tem a assinatura de Sérgio Sant’Anna. Talvez seja possível encontrar algo de proveito se o leitor gostar de futebol (desinteresse que me se dá não por qualquer suposta superioridade intelectual: simplesmente por não ter sido algo presente em minha família), mas ainda assim o futebol já foi tema literário mais bem aproveitado por Sant’Anna, como nos contos No último minuto ou Invocações.

É certo fantasma recorrente na crítica literária brasileira mais rasteira a inexistência do Grande Romance Brasileiro Sobre Futebol, como se existisse o grande romance estadunidense sobre beisebol, ou o francês sobre ciclismo… Como se Guimarães Rosa, ao publicar Grande sertão: veredas, estivesse suprindo a grave inexistência em nossa literatura de um romance sobre caubóis com cross-dressing, ou Machado de Assis tivesse preenchido com Dom Casmurro a lacuna do talvez-falso-corno. Talvez estes críticos encontrem nesta narrativa algo que consiga suprir esta grave falta de ordem sociológica/antropológica de nossa literatura, uma vez que é um texto bem redigido por um escritor de renome, mas não se encontram aproveitamentos de outra ordem como em No último minuto — nem mesmo o maior ativista anti-futebol deixaria de reconhecer a excelência daquele conto publicado em 1973.

É plenamente possível que exista na novela uma corrente subterrânea de sofisticação e complexidade que esta leitura para resenha (escrita apenas um mês depois do lançamento do livro) não tenha captado, afinal, foi só na minha terceira leitura do conto O efeito bumerangue, do livro Senhorita Simpson, que relacionei este tal efeito com metalinguagem. Há a repetição, por exemplo, da idéia de ter de se interromper um assunto por ser possível falar sobre ele para sempre, e é possível que nisto (ou em outros momentos) exista uma pista para uma profundidade despercebida. No entanto, a impressão que inicialmente se instala é que o que se deu foi uma auto-crítica que fraquejou — sendo particularmente grave aqui, uma vez que a auto-crítica na obra de Sant’Anna é mais que método artístico: é tema literário/intelectual obsessivo. Acaba ressoando certo triunfo de um tom acriticamente nostálgico, personalista de maneira desinteressante.

É certo lugar-comum, quando se fala de um artista já plenamente consagrado e de idade avançada, que ele “não deve nada a ninguém”. De fato, Sérgio Sant’Anna já compôs em seus mais de 40 anos de carreira artística uma obra sólida o bastante para que não existam dúvidas de que se tratou de uma contribuição significativa no panorama ficcional brasileiro. Trata-se de um dos pouquíssimos autores que depois do boom literário dos anos 70 conseguiu manter um alto nível intelectual e artístico em sua produção literária. No entanto, partir desta constatação para uma postura de elogios automáticos é sem dúvida contraproducente, pois se é verdade que nenhum livro fraco é capaz de diminuir uma obra que inclui trabalhos como Um romance de geração, Marieta e Ferdinando ou Um discurso sobre o método, não é por isto que é possível deixar de constatar que um conto bom, um conto de boa premissa mas de desenvolvimento problemático e uma novela tediosa são produções bem aquém daquelas que geralmente levam o nome de Sérgio Sant’Anna.

Páginas sem glória
Sérgio Sant’Anna
Companhia das Letras
184 págs.
Sérgio Sant’Anna
Nasceu em 1941, no Rio de Janeiro. Sua primeira obra é o livro de contos O sobrevivente, de 1969. Desde esta época, vem publicando regularmente em diversos gêneros literários, como teatro, romance, novela e contos. Sua obra já foi diversas vezes premiada, traduzida e adaptada para o cinema.
Breno Kümmel

É escritor.

Rascunho