Camadas instáveis

Resenha do livro O laçador de cães, de Luiz Andrioli
Luiz Andrioli, autor de “O laçador de cães”
01/09/2012

Em O laçador de cães, o escritor Luiz Andrioli reuniu vários contos, aparentemente de épocas diferentes, o que se percebe por certa irregularidade estilística e estrutural. Sua extensa experiência profissional como repórter em busca de conteúdo para a TV certamente influi bastante na busca dos temas que geraram as 15 narrativas aqui presentes. Todas elas revelam uma cidade dilacerada por histórias de solidão e miséria.

O conto Letrinha de professora, coração de bandido, já publicado no Rascunho, é quase uma crônica: confronta o repórter e um presidiário que, em longa carta, lhe pede ajuda emocional e obriga o narrador a defrontar-se consigo mesmo ao buscar no drama do meliante alguns “pontos a mais de audiência”. Funcionando como um tipo de metalinguagem, este texto pode ser lido como representação do escritor/repórter em busca de um personagem, cuja vida (real, mas ficcionalizada) trará “mais” audiência ao jornalista e, claro, mais trabalho para pagar as contas.

Sem pudores, há que se extrair da matéria do presidiário o melhor: “Esta parte não seria lida pelo apresentador. Com o tempo, o radialista aprendera que das cartas tinha que extrair apenas o que poderia fazer de seus personagens figuras mais líricas”.

A mesma apropriação dos dramas da vida alheia curitibana ocorre no conto Ladrão de galinhas, em que o delegado, quase amigo do repórter, o convoca por torpedo para ouvir a história e glamorizá-la: “Ladrão de galinha preso. História boa. Venha logo”.

A recorrência dessa instância criadora — mistura da figura do cronista de costumes com um narrador ficcional — perpassa todo o conjunto de contos e faz dessa “entidade” o grande protagonista das histórias — nem sempre o melhor. O narrador reproduz na ficção as necessidades ficcionalizadas do autor: há que ter trabalho para pagar as contas.

Ou seja, na maioria das histórias, temos camadas de narradores e personagens que se desdobram. E se essa construção é interessante — pois confere às histórias um foco narrativo, em princípio, mais complexo —, é também a grande responsável por tropeços na estrutura narrativa. Dou um exemplo enfático desse mesmo Ladrão de galinhas. A narrativa começa com um suposto pacto em que o leitor se debruça sobre o investigador Agnaldo, atribuindo a ele o protagonismo e o olhar, através do qual se acompanha a história:

O carro da polícia com o giroflex estacionou em frente da casa de Antonio. O investigador Agnaldo bateu palmas […] quando disse que era polícia, o agente já estava perto da soleira. […] Enquanto esperava respostas, passou os olhos pelo terreno […] O mato insistia em tomar o lugar de um canteiro de flores, um saco de pedras brita jazia no canto. […] Acima de tudo, sentiu um alívio por deixar a casa, mesmo tendo nas mãos a prova de um crime estúpido de um ladrãozinho que não valia nem o combustível. […]

Em seguida, o enfoque recai rapidamente sobre o ladrão (que intitula o conto) e sua mulher: ela, indignada, devolve a galinha já na panela e ele explicará o roubo como produto da raiva “que nem te conto” contra o dono das aves. De forma ainda mais abrupta, o enfoque sobre o personagem eleito pelo narrador vai recair sobre o delegado Rubão, de quem o narrador traça um quadro trivial, mas atraente:

Rubão chegou em menos de uma hora. Veio pisando forte na lajota branca, o solado da bota de couro marcava o compasso ritmado. Quem conhecia o velho sabia que os feriados eram das pescarias. Faltava menos de um ano para a aposentadoria. Delegado de classe alta, o salário até que não era ruim, o maior que a carreira podia pagar.

A seguir — e não consigo convencer-me de que isto não é defeito —, a narrativa engancha a primeira pessoa (aquela instância externa a que me refiro acima) para diluir ainda uma vez o protagonismo: “Lembrei dessa história [a do delegado] enquanto dirigia o carro da reportagem a caminho da delegacia”.

O ladrão do título será solto, claro, pois o delegado, refletindo sobre a insignificância do inquérito, chantageará o promotor, de cuja homossexualidade tem notícias: “Crime famélico […] esperava que o promotor tivesse a sensibilidade de não levar o caso para a Justiça. O promotor entendeu o recado e arquivou a história”.

Num conto com esta estrutura — e vários a repetem —, o leitor perde o pacto com o autor porque vê deslocado e oscilante, no enredo, o foco de seu interesse. Quem é afinal o protagonista desta história? O ladrão, o investigador (que sumiu), o delegado a se aposentar? Ou aquele que narra, não sob a onisciência clássica, mas, creio eu, porque não conseguiu ajustar o eixo central da ficção?

Distanciamento e maturidade
No momento em que o protagonismo se dilui, dilui-se também a possibilidade interpretativa e o valor da história — aquilo que Alfredo Bosi chama de “O que o texto quer dizer?”. O eu narrador se apropria de suas histórias, como “repórter” que é, saindo delas (ao menos aqui) enobrecido, como um herói pouco verossímil: “Consegui que um empresário dono de supermercado doasse duas cestas básicas para o pobre”.

O que espero dizer com estas reflexões é que Luiz Andrioli precisaria fazer o que faz o seu (e nosso) mestre Dalton Trevisan: deixar a história contar-se a si mesma, recusando-se a revelar enfaticamente a presença da subjetividade criadora — com sua biografia, sua aparência, seu trabalho e sua interpretação da vida. Quem se conta é a história, quem exige reflexão é o enredo, quem nos obriga a pensar, depois de fechado o livro, é o tempero do protagonista. Essa é uma boa aprendizagem que, creio, levará Andrioli a textos muito bons.

“O repórter conhece a cidade onde vive e trabalha através das suas reportagens”, diz a orelha da obra. Discordo: a cidade é que obrigará o repórter a se conhecer, mesmo quando este empunha a filmadora aleatoriamente. Penso que é como se Andrioli, ainda a amadurecer seu talento, estivesse à procura de onde fixar mais enfaticamente o olhar do escritor.

É claro que qualquer resenha que se faça sobre seu trabalho levará o autor a pagar alto preço: o de ser diretor de “conteúdos” na vida e, sobretudo, ter-se debruçado sobre Dalton Trevisan, tê-lo estudado academicamente. Livrar-se das semelhanças ou das diferenças é sempre difícil para quem começa.

Porém, vale dizer que Luiz Andrioli, que ainda fala demais — de si, do outro, dos fatos e da cidade — e parece ansiar pela adesão emocional do leitor falando tanto, está a bom caminho do que os melhores escritores conseguem: universalizar personagens e situações, tramas psicológicas e dores existenciais.

É o caso do conto que dá nome ao volume, que intui a marca da grande literatura. Talvez seja um texto mais recente em meio a contos antigos: é belo e dramático. Nele, Andrioli atribui ao caçador de cães de rua uma condição existencial que é um paradoxo: ao mesmo tempo em que os laça nos becos, na rua, nas praças (e com a mesma crueldade de um caçador de escravos fugido de Machado de Assis), para levá-los à carrocinha, ignora-lhes o coito público — pois, havendo cães nascidos, haverá sempre trabalho para ele: “Era uma espécie de ética, além do compromisso profissional, a mesma motivação que faz o bom pescador devolver o peixe pequeno para o rio. ‘Se preservar, sempre vai ter’, pensa”.

Talvez o melhor texto deste conjunto, o laço violento que o caçador usa é simbólico da prisão a que podemos submergir, nós, andantes e anônimos da grande cidade. Laçado pelas necessidades está o homem da carrocinha, assim como o repórter de tantas outras histórias, assim como o cidadão comum, o morador da periferia e o próprio leitor.

Para os moradores, a fuga de um cachorro é o fracasso do laçador, a desmoralização completa do profissional ante a corrida louca de um sarnento pelas vielas úmidas. Em uma instância maior, é a vitória sobre o controle e a vigilância do Estado.

A violência da cidade — e como Dalton já mostrou essa Curitiba! — se estende ao homem que, de laçador, se deixa capturar, apiedado, por um velho cão silencioso, que, se não virá a transformar seu algoz, ao menos o humanizará para os demais cães de rua e para a literatura.

Adiante, Luiz Andrioli, a literatura precisa de mais vampiros em Curitiba.

O laçador de cães
Luiz Andrioli
Grua
112 págs.
Luiz Andrioli
Nasceu em Curitiba em 1977. Jornalista e repórter, trabalha hoje como gestor de conteúdos para a TV. Pós-graduado em cinema e mestre em Letras pela UFPR, desenvolveu a dissertação O silêncio do vampiro, sobre Dalton Trevisan. É autor de livro infantil A menina do circo e da biografia O circo e a cidade. O laçador de cães é seu primeiro livro de contos. A publicação faz parte da seleção “Primeira temporada de originais da Grua”, da qual Andrioli foi um dos quatro vencedores.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho