Os escritores argentinos possuem uma longa tradição de criar ficções tendo como base acontecimentos ou personagens políticos históricos de seu país. Lançado em 1961, Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato, retrata artisticamente a morte do general Juan Lavalle — militar que batalhava pela independência da Argentina — em uma das tramas que compõem o livro. Já em 1995, o jornalista e escritor Tomás Eloy Martinez romanceou as andanças do corpo embalsamado de Evita Perón, figura das mais adoradas — e odiadas –, em Santa Evita. Agora, é a vez do período da ditadura militar pelo qual o país passou servir de tema para uma quantidade significativa de manifestações nas mais variadas formas de arte, dentre elas a literatura. E é esta fase que serve de ambientação para História do cabelo, de Alan Pauls, segundo volume de uma trilogia — composta também por História do pranto e História do dinheiro (ainda inédito) — sobre os anos 1970.
História do cabelo traz a saga de um tímido tradutor em busca do salão e do cabeleireiro que acerte o corte de cabelo perfeito. A obsessão com modelos, tratamentos e produtos capilares é o que move sua vida. Cada corte de cabelo — e o seu resultado — é como se uma obra de arte fosse feita ou admirada. “É a lei do cabelo. Cada salão que não conhece e no qual se aventura é um perigo e uma esperança, uma promessa e uma armadilha. Pode cometer um erro e afundar no desastre, mas, e se acontece o contrário? E se encontra, por fim, o gênio que procura? E se por medo não entra e o perde?”, divaga o narrador de maneira a praticamente tocar a alma do personagem principal e expor a principal razão pela qual vive.
Ao longo do livro, a vida deste personagem — que não tem seu nome revelado — é menos contada e mais percebida de acordo com tudo o que acontece com seu cabelo. Loiro, em dado momento tenta fazer um corte blackpower para romper com o “dogma da beleza oficial” e mostrar que é rebelde e ousado, como se uma simples mudança no cabelo representasse uma mudança de comportamento ou atitude, por exemplo. Sem muitos avisos, tudo vai acontecendo, se misturando, indo, voltando, desenrolando, sempre com o cabelo servindo de propulsor das histórias, ações, reações, sentimentos e lembranças. Em História do cabelo, o tempo passa com poucos avisos, deixando marcas profundas. Paulatinamente, é possível perceber o desprezo do personagem — uma pessoa fechada e introspectiva — pelas amizades e as dificuldades de diálogo, relacionamento e convívio.
Forma aos fatos
A ditadura argentina está no pano de fundo da história, influenciando sutilmente as decisões do protagonista — que não está preocupado com a situação política do país, mas sim com o que farão do seu cabelo, transformando-se em uma ótima caricatura do homem comum, do homem médio, aquele que está e prefere se manter alheio ao que acontece ao seu redor, importando-se somente consigo mesmo ou com seus familiares, no máximo. Apenas nas páginas finais que o totalitário governo militar passa a ser tratado de maneira mais explícita. É aí que o narrador aproveita para mostrar seu incômodo e ojeriza com o que vem daquela época, como um certo corte de cabelo dos anos 1970 que sobreviveu às décadas seguintes por estar eternizado em cabeças de celebridades. “A pátria desse corte é a Argentina e […] a época em que floresce é a época em que tudo o que nasce e cresce da terra é filho dos rios de sangue que substituem os adubos tradicionais com que se nutre a terra” — até parece que é Alan Pauls falando.
Porém, se ao longo da obra a ditadura apenas permeia a história — exceto no final, como vimos —, esse momento histórico parece refletir o tempo todo na maneira de Pauls escrever. Parágrafos longos, com frases extensas, muitas orações, repletas de informações que se sucedem intercaladas. Cada um desses parágrafos, cheios de digressões, exige do leitor uma atenção extrema para que os sutis detalhes que compõem o mosaico da história sejam percebidos. É como se a sintaxe refletisse a complexidade da ditadura argentina, com todas as suas chagas que até hoje permanecem abertas em boa parte da população do país.
Além de escritor, Alan Pauls mantém uma sólida carreira relacionada à arte em forma de escrita. Atua como conferencista, articulista, colunista, ensaísta e crítico literário desde os anos 1990, tendo textos publicados em veículos da América Latina e da Espanha. E toda essa intimidade com as letras e suas possibilidades se reflete diretamente em seu texto. História do cabelo é um desfile de recursos literários. Flashbacks, fluxo de consciência, digressões, divagações, discurso indireto livre, pitadas de ensaio pessoal, detalhismo que chega a ser excessivo… tudo isso pode ser encontrado na obra. O livro também não tem capítulos, intertítulos ou sequer respiro entre certos parágrafos, o que, se não é nenhuma novidade, tampouco é algo corriqueiro.
Com domínio sobre esses recursos, Alan Pauls prova que é possível fazer boa literatura (se é que isso existe, pois, talvez, má literatura simplesmente não seja literatura) mesmo com um argumento bastante raso — a preocupação de um homem com seu cabelo —, tendo um personagem principal cercado de secundários que beiram a insignificância e com pouquíssimas tensões ao longo da quase inexistente trama — um dos momentos mais inquietantes da história é quando o protagonista, depois de achar o cabeleireiro perfeito, descobre que ele foi demitido do salão em que trabalhava.
Entretanto, mesmo sendo mais uma boa obra de ficção que leva em conta a história argentina, a estética que Alan Pauls emprega em História do cabelo — e que também empregou em História do pranto e provavelmente empregará em História do dinheiro — deixa a impressão de que a trilogia destina-se àqueles que já possuem boa experiência com obras escritas em uma linguagem mais complexa. Poderia até dizer que História do cabelo é um livro feito pensando muito mais na leitura de um crítico do que na de um leitor. Contudo, o que é um crítico se não um bom leitor?