Dez anos da Lei de Cotas Raciais

Ações ainda precisam ser implementadas para fortalecer a inclusão de negros e indígenas nas universidades brasileiras
Ilustração: João Verderame
10/11/2023

Em 2022, completaram-se dez anos da Lei de Cotas Raciais, que constitui um marco muito importante na luta pela inclusão e garantia de direitos de pessoas negras e indígenas no Brasil. O processo de negociação foi iniciado pelo Movimento Negro e pelo Movimento de Mulheres Negras ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, portanto, bem antes de 2012.

O debate sobre a adoção de ações afirmativas como estratégia de combate às desigualdades raciais, das quais as cotas raciais são um aspecto, ganhou proporções globais a partir das propostas apresentadas pelo governo brasileiro à III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida entre 30 de agosto e 7 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul. Importa salientar que o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras desempenharam papel fundamental no processo de negociação e pressão ao Planalto Central para que as desigualdades raciais demonstradas pelos institutos de pesquisa oficiais — notadamente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que, naquele momento, demarcaram a premência da adoção de políticas de ações afirmativas no Brasil — fossem consideradas a fim de se combatê-las e, consequentemente, produzir condições de equidade para a população negra e indígena.

Ações afirmativas são iniciativas essenciais de promoção da igualdade. Na Índia, a primeira Constituição de 1948 já previa medidas especiais de promoção dos Dalits, ou “Intocáveis”, tanto no parlamento (reserva de assentos) quanto no ensino superior e no funcionalismo público. Na Malásia, foram adotadas medidas de promoção da etnia majoritária Bumiputra, sufocada pelo poder econômico de chineses e indianos. Na antiga União Soviética, adotou-se uma cota de 4% de vagas para habitantes da Sibéria na Universidade de Moscou. Em Israel, adotam-se medidas especiais para acolher os Falashas, judeus negros de origem etíope. Na Nigéria e na Alemanha, existem ações afirmativas para mulheres; na Colômbia, para pessoas indígenas; no Canadá, para indígenas, mulheres e negros. Também encontramos medidas de proteção para este segmento populacional majoritário na África do Sul pós-apartheid.

No Brasil, as ações afirmativas têm contemplado vários grupos sociais, principalmente mulheres e pessoas com deficiência. Para as mulheres, a Lei n.º 9.504 de 1997 dispõe sobre sua participação como candidatas nos pleitos e estabelece o mínimo de 30% e máximo de 70% de candidaturas de cada gênero. Para as pessoas com deficiência, a Lei n.º 8.112 de 1990 define a reserva de 20% das vagas em concursos públicos, enquanto a Lei n.º 8.666 de 1993 permite a contratação sem licitação, mas pelo preço de mercado, de associações sem fins lucrativos compostas por pessoas com deficiência. Desde 1991, empresas com mais de cem funcionários também devem dedicar de 2% a 5% dos cargos a pessoas com deficiência.

O principal objetivo das ações afirmativas para pessoas negras é combater o racismo e seus efeitos duradouros de ordem psicológica. Outra meta importante é introduzir mudanças no imaginário e de convivência entre os chamados “diferentes”, abalando as estruturas que produzem as desigualdades.

Para que um programa de ações afirmativas seja efetivo, a oferta de oportunidades é apenas um dos primeiros passos. É fundamental garantir aos protagonistas em questão as condições materiais e simbólicas para que as dificuldades ou os desníveis sejam superados e para que as escolhas de cada um possam ser feitas de maneira lúcida e planejada, a médio e longo prazos. É preciso, também, prover as condições para a construção da igualdade.

As propostas do governo brasileiro mencionadas no início deste texto diagnosticavam desigualdades raciais e propunham cotas para pessoas não brancas nas universidades e no serviço público. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já vinham adotando, por meio da Portaria n.º 33 de março de 2001, objetivos estratégicos para “formular e implementar políticas públicas que visem à democratização das relações sociais no ambiente de trabalho, independentemente de sexo, cor, raça e etnia dos atores envolvidos, e junto aos beneficiários e beneficiárias da reforma agrária e da agricultura familiar, inclusive em comunidades remanescentes de quilombos”.

As primeiras universidades estaduais a adotar cotas raciais no Brasil foram a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e a Universidade Estadual da Bahia (Uneb), em 2002. A partir daí outras instituições públicas de ensino superior criaram sistemas internos de cotas raciais, direito conquistado pela luta aguerrida travada por estudantes e docentes negros, por membros dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) e por docentes e estudantes não negros comprometidos com a luta antirracista. Pouco depois, em 2003, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira universidade pública federal a criar um sistema de cotas raciais.

A culminância desse processo de mudanças internas no acesso às vagas de universidades públicas por todo o país foi a formulação da Lei n.º 12.711, conhecida como “Lei de Cotas”. Sancionada em agosto de 2012, ela garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou de educação de jovens e adultos.

Em 2022, aniversário de 10 anos dessa lei que mudou o retrato das universidades públicas, tornando-as mais populares, plurais e multiétnicas, alguns desafios permaneciam. Em primeiro lugar, destaco a necessidade de estender as cotas aos cursos de pós-graduação e concursos para funcionários e professorado nas universidades públicas. Em segundo, a urgência de garantir recursos efetivos para as políticas de permanência de estudantes cotistas, compreendendo que estas não se restringem às bolsas de manutenção, mas devem incluir, também, o provimento de restaurantes universitários, moradia estudantil, creche e bolsas de iniciação científica. Em terceiro, é essencial implementar, em todas as instituições, comissões de heteroidentificação para coibir fraudes e impedir que pessoas brancas roubem vagas destinadas a grupos minoritários, como acontece desde a implementação da Lei de Cotas. A efetivação da política de cotas raciais passa por um conjunto de medidas que deve ser concretizado todos os dias.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

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