Seu Nonô e o Pão-Duro original

A fama de um espanhol espalhou-se pelo Rio de Janeiro para ganhar o país como epíteto nacional aos avarentos
Ilustração: Kleverson Mariano
04/11/2023

Roberto não era um amigo próximo. No retrovisor em que agora miro a adolescência, vejo um colega de praia e shopping. Um parceiro de futebol de botão, sobretudo. As partidas entre o Tradição, meu time, e o Misto, que ele comandava, sempre geraram disputas renhidas. Se o jogo acontecia na mesa adversária, o entorno do campo ganhava faixas da torcida local, pequenas tiras de papel sustentadas por palitos, nas quais se podia ler: Jovem Misto, Independente, Raça Chope. Com o passar dos anos, as partidas rarearam e o Roberto deixou de ser Roberto para ser simplesmente o Nonô.

O apelido vinha de um personagem da novela Amor com amor se paga, grande sucesso da TV Globo naquele ano de 1984. Sovina radical, Nonô Corrêa ganhou existência na interpretação de um inspiradíssimo Ary Fontoura. Sua avareza se explicitava em atos extremos, como a instalação de cadeados na geladeira e nos armários da casa, para evitar que as filhas comessem mais do que supunha necessário. Era um Tio Patinhas tupiniquim. A sovinice se conjugava à riqueza — e Nonô também mantinha um imenso e intocado depósito de moedas de ouro.

Não sei por onde anda hoje o Roberto. E ninguém mais chama de Nonô o sujeito que parece ter um escorpião no bolso. O substantivo próprio perdeu o vínculo com a sovinice quando o personagem caiu no esquecimento. Roberto talvez ainda seja um notório pão-duro, mas seu apelido já não carrega essa informação. Aqui uso uma expressão bem mais remota e que, quase um século depois de surgir, mantém o vigor.

A história é curiosa e começa com um espanhol chamado José Ramos Tápias Alonso. Nascido em Santa Maria de Tebra, na Galícia, ele imigrou para o Brasil com pouco menos de 30 anos. Instalou-se no Rio de Janeiro, então capital, onde começou a trabalhar como pedreiro. Embora solitário e discreto, em pouco tempo viria a se transformar em um daqueles tipos que a gente pode chamar de anônimos famosos: suficientemente conhecido nas ruas da cidade, mas não a ponto de transcendê-las.

Alonso morava num quarto modesto, no segundo andar do prédio de número um da Rua Visconde do Rio Branco. No cômodo, havia apenas o colchão, a caixa de madeira com ferramentas e o móvel onde pendurava as poucas roupas — em geral, calças puídas e a camisas de chita.

A rotina era bem demarcada. Acordava cedíssimo, vestia seus trapos e descia até o térreo do edifício. Ali ficava a Padaria Santa Maria, onde invariavelmente comprava dois pães dormidos, que saíam pelo preço de um pão fresco. Não demorou até que lhe rendessem uma alcunha.

“Lá vem o Pão-Duro”, passaram a comentar os vizinhos quando ele cruzava as ruas do Centro a caminho do trabalho, que ninguém sabia dizer qual era. De boca em boca, o apelido chegou ao restaurante Parreira de Vizeu, onde Alonso almoçava todos os dias, e rapidamente se espalhou.

Fundamento não faltava. Para ler o Jornal do Commercio, pedia emprestado o exemplar de algum incauto. Os banhos diários se limitavam a uma rápida ducha — sabonete lhe parecia supérfluo. Tomava o café ainda de madrugada, almoçava por volta das nove da manhã e dormia cedo só para não ter que jantar. Antes de embalar no sono, enrolava cigarros de palha que seriam vendidos aos praças do Exército na Cidade Nova. Um extra na renda obtida como pedreiro.

Comentava-se, à boca pequena, que Alonso era um homem rico. O rumor se confirmaria com sua morte, em 1933. Pão-Duro mereceu alentados obituários na imprensa. A Noite, A Batalha, o Correio da Manhã, O Malho, o Diário da Noite, O Radical e A Gazeta Popular foram alguns dos veículos que publicaram matérias, algumas em primeira página. Os textos manifestavam espanto com a fortuna encontrada no minúsculo quarto da Visconde do Rio Branco após o falecimento: depósitos em cadernetas de poupança no Banco Ítalo-Belga, no Banco Nacional Ultramarino, na Caixa Econômica Federal, no Banco do Brasil e no Citibank; vinte invólucros contendo cédulas de dinheiro; apólices da Dívida Pública e do Estado de Minas Gerais. Além disso, moedas de ouro e escrituras de vários imóveis, entre eles a do próprio edifício onde morava e do sobrado do restaurante Parreira de Vizeu.

Terminado o balanço, constatou-se que seu patrimônio ultrapassava os dois mil contos de réis. Uma fortuna para a época. A descoberta da prosperidade oculta sob o perfil humilde e reservado renderia artigos laudatórios, como o assinado por um tal João Luso no jornal A Noite. “Em vez de comprar o objeto cobiçado, [Pão-Duro] contenta-se e plenamente se satisfaz com a certeza de que o compraria, se quisesse”, pondera o autor, para então concluir: “E assim, de algum modo o adquire, sem bulir o seu dinheiro. É um sistema nítido, singelo e que tem uma suprema vantagem. Evita o enfado e o fatal desengano da posse, como esta geralmente é exercida”.

Em texto não assinado, o Correio da Manhã subscreveria: “O desequilíbrio do mundo, toda a inquietude da hora que passa reside, para muitos, em razões de ordem econômicas. Pão-Duro encarregou-se de mostrar ao mundo o corretivo para seus males”.

Poucos dias após a morte de Alonso, o suplemento de rotogravura de A Noite arriscou-se a prever que o epíteto viraria adjetivo: “Há de por longos anos simbolizar a avareza, na propriedade tão eloquente dessas duas palavras”.

Não poderia ter acertado mais. Desde então, a cidade identificou novos Pães-Duros e, análises ontológicas à parte, a expressão acabou mesmo colando no imaginário popular. Gente como o Nonô, agora novamente chamado de Roberto, e tantos outros cuja principal marca é ser mão-fechada, mão de vaca, unha de fome. Você decerto conhece um.

Mas Alonso, o Pão-Duro original, não partiria sem promover o grand finale de sua vida tão dedicada à avareza. Ao fechar os olhos pela última vez, aos 80 anos, deixou pendurada uma conta de 729 mil réis no Hospital da Beneficência Espanhola.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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