Os contos de Vocês brilham no escuro, da boliviana Liliana Colanzi, imprimem no leitor a sensação de uma viagem temporal e insólita pela América Latina. México, Bolívia e Brasil são os espaços de destaque no universo de Colanzi — nosso país surge em contornos amazônicos e também em um conto baseado no acidente com o césio-137, ocorrido em setembro de 1987, em Goiânia.
A escritora também se vale do onírico e do mistério em algumas narrativas, fundando realidades paralelas e temporalidades mistas — a força de um passado ancestral latino-americano e um mundo contemporâneo específico convivem nas narrativas (há diversas referências tecnológicas, por exemplo, como menções à inteligência artificial). Em alguns contos, é possível pensar em um diálogo com o realismo mágico, esse movimento tão associado a autores latino-americanos, mais especificamente entre as décadas de 1960 e 1970, através do qual o inusitado surge como algo corriqueiro. Em outros momentos, a autora flerta com o universo da ficção científica ou especulativa. Há algo da ordem de “outros mundos” e também do “estranho” e do “bizarro” permeando a maioria das histórias ao mesmo tempo em que reconhecemos nelas questões comuns a muitos países latino-americanos como a violência (doméstica e institucional), a precarização em diversos níveis, o descaso com a população mais pobre, a força da religião.
Mestre em estudos latino-americanos pela Universidade de Cambridge e doutora em literatura comparada pela Universidade Cornell, onde atualmente é professora, Colanzi pertence ao mundo acadêmico e definitivamente sabe onde está pisando e com que tradições dialoga. Vocês brilham no escuro, vencedor do prêmio Ribera del Duero em 2022, parece buscar pontes entre o ancestral e um mundo do futuro sem deixar de ser profundamente latino-americano.
Por dentro da cápsula
A linguagem da obra oscila entre o experimental, o híbrido e contos narrados de uma forma mais tradicional, sempre com a presença de elementos insólitos. Algumas histórias apresentam desenhos e recortes que dialogam com o que está sendo narrado — como no momento em que a enxaqueca da personagem Kurmi atinge seu auge e temos um desenho configurando uma explosão (Atomito).
O conto que abre a coletânea — A caverna — não apresenta desenhos mas também se vale de um hibridismo peculiar ao alternar pequenas narrativas com segmentos do que se assemelha a um discurso científico explicando, por exemplo, como se formam as estalactites e as estalagmites. A caverna é uma narrativa dividida em nove trechos. Cada um deles apresenta um evento ocorrido ali em um momento diferente — um parto, formações geológicas, o encontro de um casal, a existência de morcegos mutantes etc. O grande personagem é a caverna, testemunha de todos esses eventos em tempos indefinidos, que tanto podem nos remeter à pré-história como a uma época ainda desconhecida. Os segmentos se conectam em alguns momentos construindo uma linha do tempo composta por seres, animais e humanos que por ali passaram. Esse primeiro conto prepara o leitor para um universo que não está na ordem do real e de um cotidiano imediatamente reconhecível, característica marcante de toda a obra. Uma das narrativas traz a imagem da caverna como parte de uma espécie de game e utiliza pronomes neutros para tratar de seu protagonista, ou seja, os segmentos transitam das pinturas rupestres a um mundo atual ou mesmo futuro:
O portal se desenhou no ar e Onyx Müller se materializou na caverna. Desconcertade, olhou ao redor: aquele não parecia o porto no qual deveria ter desembarcado. Enviou uma mensagem de emergência a seus companheires de jogo, mas o sinal de seu dispositivo era uma chuva estática. Alguma interferência e havia arrastado a alguma paragem não indexada da deep web. Em lugar da réplica virtual do festival de Woodstock de 1969, a plataforma enviou Onyx a esse cenário lúgubre. Procurou os transmissores de conexão com a base, mas estavam fora de serviço. A recriação da caverna, precisava admitir, era bastante fidedigna.
Radioatividade e religião
Além de A caverna, merecem destaque os contos Atomito, Vocês brilham no escuro e O caminho estreito. Atomito tem como pano de fundo as consequências da existência de uma usina nuclear na vida de um grupo de amigos, assunto que dialoga com Vocês brilham no escuro, conto que dá título à coletânea e trata dos efeitos da contaminação por radioatividade. É possível perceber um interesse ou preocupação da autora em trabalhar com a temática de como as ações humanas interferem no ambiente e podem prejudicar os próprios seres humanos.
Destacam-se aqui a negligência em relação aos cuidados com essas substâncias e, particularmente em Atomito, a violência, a esperança de uma vida melhor e a luta pela sobrevivência das camadas mais pobres. Atomito é o nome do mascote da usina, descrito como o “superamigo de todos vocês”. O conto se passa na Bolívia e, mais uma vez, a autora entrelaça o enredo da construção da usina, os protestos contra ela e a vida dos personagens com o passado histórico boliviano.
Vocês brilham no escuro transcorre no Brasil. É um conto baseado no acidente com o césio-137 em Goiânia, em 1987. Nesta narrativa, a autora compõe um mosaico de situações relacionadas ao acidente, retomando a história real dos catadores que desmontaram um aparelho radiológico encontrado em uma clínica abandonada e, sem saber do perigo, venderam as peças com a substância radioativa a um ferro velho, o que acabou espalhando o césio-137 pela região. A atração pelo brilho que a substância emite provocou fascínio nas pessoas e uma grande tragédia por conta da contaminação decorrente. Assim como em A caverna, há tanto trechos informativos sobre o acidente como personagens que tiveram suas vidas afetadas por ele.
Os contos de Colanzi ocorrem afastados de grandes centros, explorando o que acontece em locais remotos, nos quais as pessoas estão em condições mais vulneráveis. A história de um vilarejo isolado é justamente o foco de O caminho estreito. Neste conto, a força da religião e o medo da punição regem a vida dos moradores que não podem ultrapassar determinado perímetro uma vez que “o mundo de Fora é feito de trevas”:
Quando algum de nós sente o desejo de ver o que existe fora da colônia, a coleira da obediência nos lembra de nosso verdadeiro lugar: a quarenta metros do perímetro os choques elétricos não passam de cosquinhas, mas, conforme nos aproximamos do campo magnético, as descargas vão se tornando mais intensas, mais urgentes, até voltarmos a escolher o caminho do Senhor.
A atmosfera deste conto me remeteu ao filme A vila (2004), de M. Night, Shyamalan, cineasta cujo universo também se baseia no insólito e no terror. Neste filme, os moradores vivem isolados em uma comunidade afastada e os mais novos são criados de modo a temer tudo que existe fora dali. No conto de Colanzi, o papel da religião se destaca com o reverendo exercendo um papel ameaçador e de poder sobre a população. É claro que um grupo de jovens buscará meios para driblar o controle e encarar o desconhecido.
Esse movimento entre o que está arraigado, o que é muito tradicional e o desejo de explorar outros mundos, seja pelo brilho do césio, seja pela ousadia em se aventurar para “fora do perímetro”, norteia muitas das narrativas. “Um pé na Bolívia e outro no resto do mundo” ou “um pé na selva e outro em Marte” são as definições da editora fundada por Colanzi — a Dum Dum. As mesmas frases poderiam ser ditas se quisermos condensar sua literatura.