Um livro para interpretar o Brasil

“Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, é imprescindível para entender a situação das pessoas negras e pobres no Brasil
Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de despejo”
13/10/2023

Em 2022, um conjunto de instituições e grupos de pesquisa, entre eles o Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais, e um dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo, solicitaram a 169 intelectuais brasileiros que indicassem três livros importantes para compreender o Brasil no período de 200 anos de proclamação da Independência.

A obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, recebeu o maior número de indicações. O que isso significa?

Em primeiro lugar, temos sinais de uma temporalidade em que a opinião e a produção intelectual de mulheres negras passam a ter algum valor, em que está se criando um novo imaginário no qual as contribuições interpretativas das mulheres negras para decodificar o mundo são ouvidas.

Neste caso em especial, quais são os aportes de Quarto de despejo? Estamos falando de um cenário no qual mulheres negras, a partir de muita luta, criaram um lugar de existência para si. Por isso, antes de falarmos sobre o livro, é fundamental compreendermos o papel e a atuação da autora.

Carolina Maria de Jesus nasceu na zona rural de Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Migrou com a mãe rumo ao interior de São Paulo, fugindo da fome, da exploração escravocrata e buscando trabalho. Nas cidades de Lajeado, Conquista e Franca, mãe e filha trabalharam na lavoura e em serviços domésticos. Depois da morte da mãe, em 1937, Carolina se mudou para a cidade de São Paulo, indo morar na favela do Canindé. Lá, teve três filhos de pais diferentes, com os quais nunca quis se casar. Por seus escritos e suas entrevistas, depreendemos que não queria ter um homem a quem servir em casa, a quem fosse subordinada; queria manter-se independente.

A despeito de contar com apenas dois anos de escolaridade, Carolina determinou-se a escrever livros, a contar suas histórias em crônicas, contos, romances, músicas, poemas e também num diário. Não o fez só como forma de desabafar, mas de efetivar um projeto literário audacioso de uma pessoa criativa e desejosa de realizar sonhos que a inscrevessem como pessoa no mundo.

No final dos anos 1950, um jornalista fazia pesquisas e entrevistas para uma matéria de jornal e ouviu falar de Carolina, uma mulher folclorizada na favela onde vivia. Encontrou-a intimidando os vizinhos, que tomavam o lugar das crianças ao utilizar brinquedos num parque público. Carolina os ameaçava de registrar o nome deles em “seu livro”. Dantas teve acesso aos cadernos engordurados da autora, encontrados no lixo do qual vinha a sua subsistência e a dos filhos, pois dali ela recolhia materiais para vender. Os diários tinham imenso potencial midiático para explorar, ele deve ter concluído.

A despeito de Carolina ter elaborado muitos projetos de livros e de tê-los mostrado a Audálio Dantas, o que interessou ao jornalista foram os diários com textos incisivos e explosivos que documentavam e escancaravam a miséria em que ela e seu povo viviam. Essa matéria bruta poderia resultar na venda de jornais e revistas, além de coadunar com o momento histórico (início dos anos 1960, pré-golpe militar de 1964) em que os pobres, os movimentos sociais e as reflexões sociológicas que queriam modificar o Brasil estavam tão em voga.

Quarto de despejo foi um fenômeno editorial no início dos anos 1960. Alcançou milhares de cópias vendidas, foi traduzido em mais de 14 países e é considerado por vários pesquisadores como o texto brasileiro mais publicado em todos os tempos. O fascínio dessa recepção fantástica passa pelo exotismo que o mercado literário aplicou a Carolina, muito mais do que por uma suposta empatia. Trataram de despertar extrema curiosidade pelos meandros do sofrimento, da precariedade, da miséria e da superação. Não podemos esquecer que, quando uma pessoa subalternizada vence a opressão, produz-se certo entusiasmo no coração da média dos opressores que gostam de se distinguir dos algozes mais terríveis. Nessa jornada heroica, a comiseração constitui-se como recurso de “humanização” do opressor.

A despeito de toda essa visibilidade, o descaso por essa mulher negra escritora permite que constantemente troquem o nome de Carolina Maria de Jesus. Jornalistas, acadêmicos, políticos e estudantes não têm pudor em chamá-la de “Maria Carolina de Jesus”. Essa confusão nos informa muito sobre o desprezo destinado aos artistas e intelectuais negros, mesmo os muito famosos.

Outras autoras negras, tais como Conceição Evaristo, Miriam Alves e Esmeralda Ribeiro, foram responsáveis por manter a chama de Carolina Maria de Jesus viva durante o longo período de apagamento que se estendeu dos anos 1980 a 2000. Também seguraram o fole as pesquisadoras Elzira Divina Perpétua, Fernanda Miranda, Gabriela Leandro, Raquel Alves dos Santos, Raffaella Fernandes e o pesquisador Mário Augusto Medeiros. Todo mundo trabalhando duro não só para que Carolina não fosse estigmatizada como a autora favelada manipulada por um jornalista, mas para que fosse reconhecida como escritora importante e intérprete da situação das pessoas negras e pobres no Brasil dos anos 1950 e 1960 por meio de seu projeto literário, notadamente do livro Quarto de despejo, sua obra mais conhecida.

O racismo atravessa e define a ascensão e a derrocada de Carolina Maria de Jesus no sistema literário brasileiro, aspecto insuficientemente analisado pela maioria dos pesquisadores brancos dedicados à sua obra, dos mais conhecidos e robustos, responsáveis por trabalhos mais alentados, àqueles restritos a artigos sobre aspectos de sua produção e trajetória.

A obra de Carolina Maria de Jesus, uma escritora negra que lutou a vida inteira para construir um lugar de existência para si mesma, nos convoca a construir outros imaginários que possam apreender suas paisagens literárias. Uma autora singular, complexa e paradoxal que não obedeceu à norma culta para escrever e grafou camadas superpostas nas páginas sujas de cadernos encontrados no lixo; que escreveu um texto errático, forjado no processo alquímico de diálogo entre dois anos de escolaridade formal, inventividade e determinação sem limites.

Cidinha da Silva

É escritora e doutora em Difusão do Conhecimento. Publicou 21 livros, dentre eles, os premiados Um Exu em Nova York e O mar de Manu.

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