A morte alcatifada 

Por mais dor que possa provocar, o suicídio será sempre um enigma incompreensível para quem fica
Ilustração: Bruno Schier
11/10/2023

*Neste texto, foi mantida a grafia vigente em Portugal

Há um poema de Mário de Sá-Carneiro, chamado Fim, que não me sai da cabeça:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Mário suicidou-se aos 25 anos em Paris. As cartas descobertas recentemente entre si e Fernando Pessoa revelam um personagem com sentido de humor, à frente do seu tempo, extremamente criativo e longe do perfil estereotipado do deprimido e do suicida. As razões que levam alguém a suicidar-se só ao próprio dizem respeito; por mais dor que possa provocar, o suicídio será sempre um enigma incompreensível para quem fica.

Quando conheci a Lia, num Verão passado em casa de uns amigos na Costa da Caparica, tinha eu uns 10 ou 11 anos e ela talvez uns 30, gostei logo dela. Era enérgica, bonita sem ser espampanante, divertida, e tinha uma filha muito irrequieta e magricelas, com quem nunca brinquei por considerar qualquer criança abaixo dos seis anos de idade um bebé. O meu interesse recaía na mãe. Talvez a pessoa mais histriónica e extrovertida que conheci na vida. Contava piadas brejeiras em voz alta, ia a correr para o mar e lançava-se de cabeça sem passar pela fase de habituação térmica à água fria, quase sempre a temperaturas aprazíveis para esquimós. Eu também nunca tinha frio, os outros adultos, nomeadamente a minha mãe, é que não me deixavam entrar de chapão nas ondas, como a Lia fazia, e obrigavam-me a ir molhando o corpo a prestações, à velocidade das pessoas enrugadas e com varizes, que já não se bronzeavam por mais que se pusessem ao sol.

A Lia era o adulto mais fixe de todos. Brincava com a filha, dizia piadas e usava os biquínis mais pequenos e bonitos da praia. A Lia tinha um marido; contudo, eu nunca o vi. Ouvi dizer que era embarcadiço e que por isso ela estava quase sempre sozinha com a filha. Viviam numa casa pequena em Ovar e não tinham muitas possibilidades económicas. A Lia estava no desemprego há vários meses.

No dia em que eu soube que a Lia se tinha matado, alguns meses depois desse Verão, não consegui entender o que teria levado uma pessoa como ela a fazê-lo. Parecia tão feliz consigo e com os outros. A Lia costumava dar beijos nos seus próprios braços quando estávamos estendidas na toalha. Beijava os braços e dizia em voz alta: “Sou mesmo linda”. E toda gente se ria, claro. Ela tinha mesmo graça com a sua espontaneidade.

A mesma Lia que dava beijos a si própria comprou veneno para ratos e tomou-o em sua casa, com a filha magricelas a brincar na divisão do lado. Foi a trinca-espinhas que ligou para a avó quando viu a mãe estendida e inanimada na cama. O frasco de veneno ficou em cima da bancada da cozinha. A Lia não pensou no perigo, só quis morrer; suponho que só tenha querido parar de sofrer. Uma pessoa tem de estar a sofrer muito e há muito tempo para chegar até ali.

Penso muitas vezes na Lia e na morte alcatifada que devia trazer consigo há bastante tempo. Metros de alcatifa a abafar o som da caminhada. Ninguém lhe ouviu os passos, só a própria Lia devia saber que a morte vinha no seu encalço.

Cláudia Lucas Chéu

Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1978. É escritora, poeta, dramaturga e argumentista. Tem mais de uma dezena de livros publicados em Portugal (poesia, dramaturgia, romance e contos). No Brasil, publicou os livros de poesia Confissão (Reformatório) e Ratazanas (Demônio Negro). Escreve para diversas publicações (jornal Público, Mensagem de Lisboa, revista Máxima, entre outras). Confissão foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2021.

Rascunho