Entrei na faculdade como fã de Kurt Vonnegut. Dois semestres na USP me transformaram em admiradora de Antonioni. Envergonhada da cultura pop, eu me perdia nos vazios em preto e branco da Europa no pós-guerra.
Desde o vestibular, sonhava ser escritora. Aluna de cinema, cursava optativas na Letras e na Editoração. Literatura espanhola, Literatura latino-americana… Rodava os departamentos, procurando a grade horária presa com tachinhas nos quadros de cortiça. Dois créditos à tarde, quatro créditos à noite. Almoçava no bandejão, jantava um misto-quente tabelado por R$ 1,00.
Em 1996, tive aulas com T. por dois semestres: Redação editorial e Edição de livros populares. T. foi o primeiro editor que conheci. Nos exercícios, reduzíamos e aumentávamos blocos de texto. Um verbete de enciclopédia: corte ou acrescente algumas linhas. T. ensinava: verbos são a essência da frase. Adjetivos e advérbios você pode tirar. Essa mecânica, meio Resta um, me fascinou. Na entrega final, T. pediu os rascunhos. O aprendizado estava no processo, e não no resultado.
Mostrei para T. alguns contos que eu escrevia. Ele elogiou e me deu uma dica: “Se puder, escreva uma história mais longa. Editoras valorizam mais os romances”.
Naquele mesmo ano, B. dava Introdução aos estudos literários I para os calouros de Letras. Alguém me deu a dica e fui assistir como ouvinte. “Alguns autores escrevem com facilidade, como José Lins do Rego” — ele comparou, na sala grande, quase um auditório — “outros sofrem a cada linha, como Graciliano Ramos”.
Não seria nada fácil — logo descobri — escrever uma história longa, sofrendo a cada linha. Sair da universidade foi assustador. Sem grade horária, o que eu faria das minhas horas?
O primeiro computador, comprei usado do meu irmão, depois da formatura. Tenho uma dúzia de arquivos Word 97 que morreram na primeira ou segunda página. Na maioria dos casos, o título era melhor que o resto:
“Destruindo os bens da família”
“Lésbicas falando de suas mães”
“Cuidadosamente evitando o suicídio”
(naquele ano, os registros comprovam, apostei em gerúndio nos títulos)
Só em 1999 consegui embalar numa ideia e ultrapassar as cinquenta páginas.
O que aconteceu no meio — em 1998 — é que me contrataram para escrever dois roteiros de longa-metragem. Aproveitei a prática e tentei aplicá-la à literatura. E aqui voltamos à proteção da universidade, com o terceiro professor importante nesta crônica: J.
Foi ele quem me chamou para trabalharmos juntos, num dos contratos acima. Era um verão quente demais. Voltávamos de ônibus para o centro. Ele contava suas histórias, outros textos, outras décadas. Eu lembrava de suas aulas de dramaturgia. Como aluna, minhas histórias cheias de entrelinhas acabavam frouxas. O que ele disse sobre conflito? Só gravei: conflito é importante.
Em 1996, último ano da minha graduação, a Rede mundial de computadores chegou ao Brasil — para quem tinha telefone. Em casa (na verdade, um quarto alugado), só tive internet em 1999. Nesse intervalo, morei em cinco endereços diferentes. Manhãs e tardes e fins de semana empacada diante do computador.
Alguém me disse que um figurão da USP (B.?) foi contra a criação literária no curso de Letras, porque “ninguém aprende a ser escritor na faculdade”. Que seja — não alimentarei a polêmica. Não tenho certeza se um curso estruturado de Escrita criativa seria mais efetivo que a bagunça em que me formei.
Só direi que, se alguém aprende a escrever, de algum jeito foi. Lendo Ziraldo na infância, Vonnegut na adolescência, Peter Handke nos anos 1990. Cortando advérbios, estudando dramaturgia ou acumulando textos inacabados. Tudo isso é menos sofrido com a companhia dos professores. O conforto e a esperança que oferecem: saber que alguém trabalha com livros, como algum dia você sonha conseguir.