Os livros na estante

Organizar livros na casa é também uma maneira de reorganizar os seus dias e suas saudades
04/09/2023

Já faz um mês ou um pouco mais que estou investida na empreitada de organizar a minha estante. Salvo engano, nesse tempo, a internet inclusive viveu a polêmica sobre ter ou não ter estante, guardar ou não guardar livros e, sobre isso, eu vou me abster de comentar.

Fiquemos com os fatos:

1. Eu tenho muitos livros;

2. Eu pretendo ficar com eles;

3. Eu tenho recebido muitos livros de presente e eu acho isso maravilhoso.

Eles chegam e eu vou lendo e depois colocando cada um na estante, ou colocando na estante e depois lendo cada um (ou me esforçando muito pra isso), sempre dentro de uma lógica pré-estabelecida. Eu organizo os meus livros por cores e talvez essa não seja a decisão mais esperta, mas é a mais bonita e te obriga a fazer uma coisa que é, também, muito bonita: olhar para os seus livros. Prestar atenção nos detalhes, encostar a ponta dos dedos naquela lombada como que para se assegurar de que você vai sempre se lembrar de que cor ela é. Nem sempre funciona, mas quase.

E aí, de tempos em tempos, é preciso tirar uns instantes para organizar as coisas, reposicionar um ou outro livro, deixar tudo alinhadinho. Mas, veja, arrumar uma estante é um processo infinito. Eterno. Você tira um livro do lugar, vê a ponta da página dobrada e não resiste, você vai lá ver o que é que você marcou enquanto lia aquele livro, há um ano, dez anos, quando? Você lê uma frase, que por estar grudada em outra logo em seguida te obriga a continuar a leitura, você se senta um pouquinho na poltrona confortável ali do lado e você viaja rápido para o ano, para o dia em que leu aquele livro pela primeira vez. Você se encontra de novo com aquela personagem que te marcou tanto, de tantos jeitos. Ou você encontra ali, bem no começo, uma dedicatória escrita com caneta verde (!) e com as feridas em carne viva. Você descobre alguma coisa que não sabia ou não se lembrava que tinha mas que parece gritar me leia, me leia agora, isso é sério. Isso é muito sério. Você resolve tirar aquele livro da estante (só aquele, mas não só) e colocar na cabeceira da cama, o lugar sagrado dos livros a serem lidos com urgência e você percebe que arrumar uma estante é desarrumar uma mesa de cabeceira mas, principalmente, é reorganizar os seus dias e suas saudades. E por isso você não quer que acabe.

Todo o resto já não tem tanta importância.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

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