A viagem no tempo

Em livros de bolso amarelados pelo tempo, instala-se a esperança de redescobrir os segredos do mundo
Ilustração: Thiago Lucas
23/06/2023

O pai tinha uma coleção de ficção científica, em edições de bolso amareladas. Aos onze anos ela começou o curso de inglês. Adolescente, ela fuçava os títulos da estante, procurando aqueles que conseguia ler. Aos dezessete, quando passou no exame de proficiência, já conhecia Arthur Clarke, Isaac Asimov, Kurt Vonnegut, Ray Bradbury e Philip K. Dick. Sua visão da existência estava aberta para o desconhecido.

Na faculdade ela conheceu professores dedicados à cultura brasileira e às questões sociais. Envergonhou-se de suas leituras populares. Falar de ficção científica não caía bem, entre colegas que frequentavam cineclubes e liam poetas marginais. Fumou um baseado pela primeira vez, e impressionou-se com a alteração da percepção. Chegou a pensar que o companheirismo psicotrópico levaria finalmente à iluminação espiritual. “Os maconheiros são uns chatos”, outro colega a alertou. Ela lembrou dos anos finais do Phil Dick, e concluiu que o colega sóbrio tinha razão.

Formou-se no curso superior, e começou a trabalhar. Passou alguns anos sem tempo para ler. Precisava ganhar mais, ser promovida, morar melhor. Fez pós-graduação, dois anos de textos complicados sobre assuntos profissionais que no fundo não a interessavam nem um pouco.

Às vezes aparecia algum filme novo de ficção científica no cinema. Ela assistia sozinha (seu marido não era fã do gênero). O velho pai, ao telefone, era a única pessoa com quem trocava ideias sobre vida extraterrestre, viagens intergaláticas, as distâncias medidas em anos-luz.

Quanto mais se estressava, mais sentia saudades da adolescência.
Desiludia-se com a profissão. Numa livraria a caminho do trabalho, rondava a estante de ficção científica, folheava relançamentos das obras que lera havia anos, na coleção amarelada do pai. Pensava em comprar, chegava quase até o caixa, e desistia.

“Já estou velha demais pra essa bobagem”, reprimia-se.

Até que um dia a empresa anunciou uma reestruturação. Ela não seria demitida — prometeram —, mas seu departamento entraria em férias coletivas. Gerou-se um pânico no final do expediente. Muitos acreditavam desesperados que sairiam para nunca mais voltar. Ela parou, na escada do metrô, antes de se afundar na estação lotada. Abriu o aplicativo de leitura eletrônica. Buscou alguns títulos de memória. Encontrou Cama de gato, com desconto de vinte por cento. Comprou.

Foi o livro que mais a impactou, aos quinze anos. Leu a primeira página ali mesmo, no alto da escada, na tela do celular.

“Hoje eu sou bokononista. Eu teria sido bokononista naquele tempo, se houvesse alguém para me ensinar as mentiras agridoces de Bokonon.”

A carteira de identidade, em sua bolsa, garantia que ela nascera quarenta e dois anos atrás. Em sua mente e seu coração, naquele momento, ela tinha quinze. Quase três décadas retrocederam instantaneamente (o que é o tempo?). Diante dos livros de bolso amarelados, na estante de seu pai, ela ansiava por redescobrir os segredos do mundo.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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