No meu primeiro ano de faculdade, tive como professor de Metodologias do Trabalho Científico o brilhante escritor e estimulante professor Rui Zink. Os adjectivos rimam, mas não deixa de ser verdade. O Rui Zink ministrava esta disciplina (não sei se ainda hoje o faz) com um nome pomposo que eu não fazia ideia para que serviria num curso de Literatura; vim depois a saber que o objectivo da cadeira era ensinar-nos a estudar. Ensinar-nos a estudar Literatura? Achei parvo de qualquer forma, mas que sabia eu sobre Literatura aos dezanove anos se ainda hoje, aos quarenta e cinco anos de idade, não sei nada de nada?
Numa das suas primeiras aulas, o professor Rui Zink pediu-nos que desenhássemos uma casa com um X dentro e um telhado. A única regra era que não levantássemos a caneta do papel a partir do momento em que começássemos a desenhar. A ideia parecia simples: traçar as linhas de uma casa com um X dentro. Mesmo assim, parecendo fácil, resolvi fazê-lo a lápis. Uma proposta que parecia simples, afinal tornou-se mais complexa na prática. Não conseguia arranjar maneira de completar a casa sem ter de interromper as linhas. Por isso, porque não acertava, desenhava e apagava com a borracha as várias versões inacabadas da casa. O Rui Zink, que circulava pela sala como um professor de artes plásticas a vigiar os seus pupilos, disse-me quando passou pela minha secretária: “Não apagues o erro. Se apagas vais repeti-lo”.
Passaram-se mais de vinte anos desde esta aula, no edifício da Avenida de Berna em Lisboa, e eu tenho quase a certeza de que nunca o esquecerei, até porque agora ficou escrito. A lição do Rui Zink podia ser a síntese prática da frase de Samuel Beckett: “Try again, fail again, fail better”. Se inicialmente não percebi por que raio estávamos a desenhar uma casinha numa das primeiras aulas de um curso de Literatura, até hoje não esqueço a lição fundamental para a escrita e para a vida. Ao fim de uns quantos rascunhos, e com a folha cheia de tentativas, lá consegui desenhar a casa sem levantar a caneta do papel.
O Rui também nos ensinou que podíamos tratar os livros como nos desse na telha, como nos apetecesse. Numa outra aula explicou-nos, de uma forma que podemos dizer atlética, como maltratar os livros que comprámos com o nosso dinheiro. Pegou num exemplar, não me recordo de que autor ou autora, e começou a pontapeá-lo na boca de cena da aula, mesmo em frente à assistência perplexa. Mostrou-nos também o interior do livro, todo sublinhado e riscado, e deu-nos sugestões sobre os melhores marcadores fluorescentes do mercado. Tudo aquilo na altura me parecia bastante antipedagógico e ao mesmo tempo excitante. A mim, tinham-me ensinado durante todos os anos de ensino anteriores à faculdade a estimar e preservar os livros.
Diante da demonstração punk de Metodologias do Trabalho Científico do professor Rui Zink, senti-me livre. Aquela sessão libertou-nos, se não a todos os alunos e alunas, a muitos de nós, da solenidade da literatura e do objecto livro. O Rui tinha razão, se o livro é meu, se fui eu que o paguei, posso mesmo fazer o que me apetecer, posso usar o livro. Não quer dizer que o vá pontapear, obviamente, mas sou livre de fazer o que bem entender sem sentir que cometo alguma heresia. E depois ensinou-nos esta palavra, “usar”, que é importante e raramente utilizada em relação aos livros, porque clarifica que o livro é, de facto, um objecto.
Para além de excelente professor, o Rui Zink é um belíssimo escritor. Com ele, com os seus livros, também aprendi a desmistificar uma data de parvoíces pomposas sobre livros e literatura. O Rui escreve o que lhe apetece e tem um sentido de humor sofisticado. Os livros dele têm dimensão sem serem maçudos. O Rui e os seus livros não parecem portugueses de tão português que são. O suplente, A instalação do medo, Apocalipse nau são alguns dos títulos das suas obras. É autor de uma obra diversificada, do romance à banda desenhada, passando pelo ensaio ou pela literatura infantil. Felizmente também está publicado desse lado do Atlântico, façam o favor de errar melhor e de o ler.