Graças a um erro qualquer no site de reservas, recebi um upgrade gratuito no hotel. O quarto, maior do que o meu apartamento, tem vista para o mar. Olha, vou te contar, a vida de rico é ótima. Eu seria bem capaz de me acostumar com isso. Infelizmente não é para a minha classe social. Professor precisa contar com o erro alheio para ter uma experiência dessas.
O Rio melhorou muito mas ainda é um lugar injusto, desigual e, portanto, raivoso. Como é tudo mascarado pelas inegáveis belezas físicas da cidade, as pessoas às vezes não notam. Mesmo aqui, temporariamente e acidentalmente, em um quarto luxuoso de hotel, estou como sempre estive: do lado de quem é sacaneado, mal pago, explorado.
No restaurante do hotel, assisto um casal que visivelmente já deveria ter se separado naquilo que me parece ser uma rotina para eles. Completamente acostumados com os luxos que eu fotografei para mostrar para os amigos, transitam com absoluta indiferença a tudo e todos. Tratam os funcionários como obstáculos em uma garagem, aquilo que sabemos que são a sustentação do prédio mas que evitamos colidir em nosso trajeto. Não há um gesto de afeto entre eles, com eles, a partir deles. Claro, pode ser só um dia ruim, não os conheço, mas fiquei impressionada. Eu ainda sendo eu, criei na minha cabeça toda uma história do casal rico que não se separa para não dividir dinheiro.
A moça que no dia anterior conseguiu o meu chá chegou. Ela sorri para mim e pergunta se já me deram o meu chazinho. Pergunta pelo meu filho, pela minha cachorra. Eu pergunto sobre a filha dela. Ela responde toda sorridente que a menina passou de ano. Gosto dela. Olho com admiração a moça trabalhar, paciente com os malas que chegam, carinhosa com as crianças, gentil com os velhinhos. E tem uma força. É uma força que reconheço e que, acho, eu também tenho. É a força de quem tem filho para criar, de quem sabe que o mundo não está a seus pés e de quem sabe que só se hospeda num lugar desses por sorte do erro alheio.
O casal à minha frente reclama que sei lá o quê ainda não chegou. Pediram o sei lá o quê deve ter no máximo uns 5 minutos, o tempo da minha conversa com a moça do chá. O que eles estão reclamando, no fundo, é que não transam tem tempos, penso eu.
Olho pela janela. Lá embaixo um monte de maluco nadando no mar aberto. É cedo, as ruas e a praia ainda estão vazias. Não tem sequer um pagode tocando, nada. Só o bando de doidos no mar. Me dá uma certa inveja, ter esse tipo de disposição.
Amanhã é Bloomsday. Comemoramos o dia em que se passam as 19 horas narradas em Ulisses, do James Joyce, e vividas pelo personagem Leopold Bloom. Sou fã, sou dessas.
Olho para o casal à minha frente com um grande distanciamento emocional, com a cabeça em outro lugar, quase como o Sr. Bloom andando por Dublin. Não conheço a Irlanda, morro de vontade. Um dia, absolutamente consciente de ser uma armadilha para turistas, vou fazer o tour James Joyce pelos locais mencionados em Ulisses. Sei que é óbvio e provavelmente um pouco brega, mas não ligo.
O barulho do mar é, realmente, calmante. Lembro que uns anos atrás era moda um aparelhinho com sons desse tipo. Baleias, mar, floresta, sapos, sei lá. Deve ter alguma playlist no Spotify de “sons do mar”, vou procurar.
Preciso sair desse castelo de cristal e resolver o que me trouxe à cidade. Ligeiramente contrariada, levanto. Desço e rapidamente a realidade me atropela. Resolvo caminhar. Ainda não é Bloomsday, mas é sempre Bloomsday.