Legítima defesa

Pequenos recortes do cotidiano: da cachorra dona da casa ao ouriço-do-mar que usa chapeuzinho
Ilustração: FP Rodrigues
25/05/2023

1.
Desmaiei feito um ridículo saco de batatas. Não me machuquei graças a um enfermeiro de dezesseis metros de diâmetro, portador de um sorriso proporcional. Existem pessoas assim, que sorriem e são gentis dentro de um CTI de hospital público em deus-me-livre. Não canso de me impressionar (e de ser grata).

2.
Nina não aprovou a arrumação que fiz na casa e decidiu que a sua caminha, agora, pertence ao meio geométrico da sala. A casa é dela, tudo bem. O problema é que não tem uma única noite em que eu não tropece. Estou com as canelas cheias de roxos fornecidos pela mesinha que fica ao lado. As tatuagens escondem um pouco, mas talvez seja a hora de mover a mesinha.

3.
Depois de passar 52 anos abusando, descubro que meu corpo não lida mais tão bem com lactose. Tenho que diminuir a quantidade de queijo na minha dieta. Vou cortar os pulsos.

4.
Em uma tentativa de perceber o mundo um pouco melhor, faço óculos novos. Digo, lentes novas. Vou voltar com uma armação antiga de quem eu estava com saudades. Com a terapia em dia, reflito se estou com desejo de retorno em mais alguma coisa. Não cheguei a nenhuma conclusão ainda, mantenho vocês informados.

5.
É fechamento de semestre. Para professores, isso significa muito café, pouca paciência, muito trabalho, pouco sono, muita irritação, pouco dinheiro. Segundo um aluno de produção gráfica, um livro impresso pode ter um número ímpar de páginas encadernadas (dica: uma folha de papel tem dois lados, frente e verso). Tem horas que a gente pensa em desistir, montar uma barraquinha de água de coco na praia e pronto.

6.
Carro na oficina, pego o do meu pai emprestado. Não sei onde está nada, sou péssima com isso. Não consigo abrir o porta-malas e fico lá, sorriso amarelo, “o carro não é meu, moça”. Enfio tudo no banco de trás mesmo, dane-se. Seria bacana se eu fosse um pouco menos burra.

7.
Estou pensando no projeto do próximo pós-doc. Alguém me interne, por favor.

8.
Descobri no Twitter que algumas espécies de ouriço-do-mar usam uns chapeuzinhos por motivos emocionais. Eu sigo uma página intitulada Como nascem os desenhos animados que é um dos principais motivos para se ter, ainda, Facebook. Ando numa gastura de rede social que nem te conto. Ouriço-do-mar com chapéu ou pinguim sendo condecorado, por outro lado, faz tudo valer a pena. Sim, é esse tipo de conteúdo que eu consumo na internet.

9.
Quando a vi em sua versão plugged em uma cama de hospital, o que mais me impactou foi a solidão do olhar vazio.

10.
Essa é minha 140ª “crônica” aqui no Rascunho, sem contar as do antigo Vida Breve. Tenho um puta orgulho e uma gratidão maior ainda. Escrever é um exercício que depende do ambiente. O Rascunho é e sempre foi um terreno fértil e acolhedor. As aspas no começo do parágrafo vão por conta desse formato fragmentado, que não é competente o suficiente para ser uma máxima e nem coerente o suficiente para ser uma crônica. É que eu precisava matar a vontade de fazer uma coisa assim. Foi legítima defesa, doutor.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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