Feliz e triste ao mesmo tempo

Diálogos com a filha sobre o cotidiano e a descoberta de um novo significado para a palavra emoção
Ilustração: Cesar Andrade
17/05/2023

Desde que Lia era bem pequenina, instituímos a Pacto do Livro Pré-Sono (PLPS). A operação é simples: próximo à hora de dormir, ela se deita ao meu lado e, juntos, lemos algum dos títulos comprados nas livrarias da cidade ou recebidos como parte do clube de assinatura mensal. Se antes apenas ouvia, agora, com 7 anos, já se aventura a desbravar as histórias. E a comentá-las com admirável desembaraço.

Nos últimos meses, porém, o PLPS se tornou claudicante. Não por falta de interesse na literatura infantil, sempre pródiga em ótimas histórias, mas porque Lia tem se valido desse momento tão especial entre pai e filha para debater os mais variados assuntos. Da preferência por determinada cor à razão que move os homicidas. Da comida servida na escola à existência dos unicórnios.

Há duas ou três semanas, ela se confessou surpresa ao saber que o Estado do Rio de Janeiro tem o mesmo nome da cidade que é sua capital. Assim como São Paulo.

— Que falta de criatividade… — comentou, com ar de enfado.

Noutra ocasião, desenvolveu um longo raciocínio sobre a desobediência à lei e a consequente aplicação de multas, para então indagar:

— Quem multa os motoristas?

— A Polícia — respondi.

— E quem é a Polícia da Polícia?

— Não existe.

— Existe sim. É a corregedoria.

Não me pergunte de onde ela tirou a informação, só imaginem meu desconcerto.

Pois no sábado passado a conversa enveredou pelo desenho que ganhara de uma amiga naquele mesmo dia. Ela e Alice se conhecem desde a creche e desenvolveram um tipo de afeto que é bem traduzido na forma como se chamam: “irmã de coração”.

Lia me descreveu o presente em minúcias e avisou que gostaria de enquadrá-lo. Na imagem esboçada pela amiga, está Catarina, a gata com quem conviveu desde que chegou ao mundo. Uma felina gorducha a quem sempre chamei de Caramelo devido à coloração dos pelos e que pertencia à Juliana, mãe de Lia.

Conheci Catarina, ou Caramelo, na época em que comecei a namorar a Ju. Ela morou conosco durante o período em que fomos casados. Com a separação, voltou à companhia exclusiva da dona — e de Sofia, uma gata pouco mais nova, de pelos longos em tom de cinza. Desconfiada, Sofia tratava a parceira com desdém, quando não com franca rispidez. A afeição de Lia nunca deixou margem para dúvidas: foi Catarina quem ela escolheu para amar.

Assim o fez. Mal começara a andar e já pegava a gata nos braços, num desarrumo que por vezes rendeu doloridos aranhões. Dormiam na mesma cama, acarinhavam-se lá do jeito delas e buscavam se entender no diálogo possível entre o balbucio e o “gatês”.

Mas um dia Catarina adoeceu. Parou de comer, o corpo foi desmilinguindo até perder o viço. Troca de ração, remédios, injeções. Tudo foi tentado, nada adiantou.

A perda de Catarina talvez tenha sido a primeira experiência de morte para Lia. Ela me dizia da profunda saudade, tentava compreender o que nós, adultos, tampouco compreendemos.

No desenho, abaixo da imagem de Catarina, Alice escreveu um curto texto: “Eu sempre estarei nos momentos mais difíceis”.  Foi ao ler essa frase que Lia se sentiu estranha, “feliz e triste ao mesmo tempo”, e ensinou ao seu pai um novo significado da palavra emoção.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho