A morte da narradora

"Todo dia é domingo", de Geny Vilas-Novas, é marcado pelo texto bem urdido e econômico na construção dos capítulos
Geny Vilas-Novas, autora de “Todo dia é domingo”
01/05/2023

No início de Todo dia é domingo, romance de Geny Vilas-Novas, a narradora cita o Aqueronte, rio sobre o qual o barqueiro Caronte conduz as almas dos mortos ao Hades. Logo em seguida, ainda no mesmo parágrafo, aparece o nome de Dante seguido do seu Inferno. O que deveríamos, a partir de então, pensar em relação ao destino desta narrativa? O que acontece, porém, é que, desse ponto em diante, não se trilha o caminho da morte; ao contrário, predomina a presença das coisas humanas, como a narração das sutilezas da memória. Entram em cena os pais desta narradora culta, sempre a citar a mitologia e mesclá-la às memórias de família, sobretudo às da mãe. Ela, a narradora, movimenta-se entre idas e vindas a Minas Gerais, passando por diversas cidades, e depois o Rio de Janeiro, onde afirma morar.

O romance mergulha fundo na memória familiar, em busca das relações de afetos entre irmãos, irmãs e outros parentes. Vez ou outra surge algum personagem que impõe medo, principalmente quando se trata da época da infância. Toda essa teia familiar, incluindo parentes próximos, distantes e amigos, atua no sentido de escavar a memória e apresentar a própria narradora como alguém a resgatar as histórias gerais. A autora situa-se como alguém marcada por uma missão, que é a de não deixar morrer as memórias da família. No início, a personagem censura a mãe:

Joana morreu no quarto que dá para a sala de jantar. Mãe, esquece a tia Joana, você mesma não repete que não se deve construir tesouro na terra? Minha filha, estou só falando.

A narradora-autora segue o mesmo caminho da mãe. Ela está apenas falando, seu livro é uma espécie de salvação de um tesouro que pode estar preste a se perder. Para descobrir esse tesouro, no entanto, é necessário ler com calma, tentando obter de cada frase o efeito miraculoso da narrativa de memórias.

Autoficção
Característica da literatura contemporânea, a autoficção parece ter vindo para ficar. O livro insere-se em tal contexto quando a autora utiliza o nome de família e dá mostras de que se trata de uma história senão autobiográfica, pelo menos com tintas autorais. O curioso nessas narrativas é a preocupação, em alguns momentos, de não ferir pessoas “reais” que aparecem como personagens no romance.

Certa vez, conversando com outra escritora que transita nesse tipo de narrativa, ouvi que ela teve de enfrentar alguns problemas familiares depois da publicação do seu livro, porque parte da família ficou insatisfeita devido ao que ela escreveu em relação a alguns parentes, então as relações foram cortadas. O norueguês Karl Ove Knausgård conta algo semelhante a respeito de um tio, quando começou a publicar a sua autoficção. A verdade é que nenhum escritor parte do nada e, mesmo que ele mascare alguns personagens, sempre haverá alguém para descobrir de quem se trata. Portanto, falar de si ou da família numa obra literária sempre foi rotina na história da literatura.

O romance tem como âncora a mãe da narradora. Ela é a pessoa que detém o baú das lembranças, volta sempre ao ponto de partida ao contar uma história a respeito de um homem que teria conhecido numa viagem de trem, quando ela ainda era bastante jovem e solteira. Levanta, então, hipóteses sobre o que teria acontecido caso tivesse estreitado relações com este, que a admirou profundamente.

A narrativa avança em meio às lembranças; por outro lado, tomamos conhecimento das dificuldades do presente. Estas não envolvem problemas materiais. A Minas Gerais da família é sinônimo de riqueza, de propriedades, de terras e de animais, o que não deixa de gerar preocupações, porque os problemas são de outra ordem, sobretudo os de doenças que geram mortes precoces ou que exigem longos tratamentos.

O que marca o leitor é a forma poética do texto, bem urdido, econômico na construção dos capítulos, em meio a uma língua portuguesa polida, onde cada reminiscência brilha como um achado quase perfeito entre forma e conteúdo.

O leitor poderá ficar na expectativa de um grande acontecimento, que poderá vir adiante, como o clímax numa obra convencional, que muda por completo o desenrolar da trama provocando surpresas. Porém não é esta a intenção do texto, e é bom que assim não o seja, porque o importante são as pequenas emoções que o dia a dia provoca, e as sutis mudanças que ele engendra. Alguém poderá dizer que se trata de uma narrativa voltada para as descrições da vida numa fazenda, do seu dia a dia, da enumeração de fantasias das crianças quando estas se misturam aos animais, mostrando destreza a cativá-los e a controlá-los, trazendo-os ao seu círculo de afeições. Mas não é isso que acontece.

Preocupação
Três quartos do livro percorrido, o leitor se depara com a doença da narradora. Então, a preocupação é saber se ela sobreviverá ao final do romance, ou se ele terá de terminar antes. Eis algumas passagens que atestam a preocupação:

Hades me recebe no fundo nervoso do seu palácio. Em posição fetal, permaneço gemendo e grunhindo. O torturante odor dos alimentos invade o mundo. A boca enche de chagas, a língua incha, todo esforço é gasto em um único banho.” […] As superfícies lisas se tornam ásperas, as veias inflamadas da quimioterapia.

Toda narrativa, por mais descritiva, tem a sua trama. Em Todo dia é domingo, esta vai se tecendo através do adoecimento de uma narradora fragilizada, fato que mostra a grande qualidade da obra. Narradores não têm superpoderes, são pessoas comuns, frágeis, sujeitas a todos os infortúnios, e eles ainda são ameaçados pelo ato de escrever.

A morte do narrador, ou da narradora, poderá nos privar da literatura. E sem a literatura será difícil viver. Isso tudo nos revela como a arte é frágil, tão frágil como quem a produz. Livros (e obras de arte em geral) sobreviveram a séculos graças ao grande desejo de quem os produziu e, ainda, graças a uma mãozinha do acaso.

Todo dia é domingo
Geny Vilas-Novas
7Letras
171 págs.
Geny Vilas-Novas
É escritora mineira. Autora dos romances Fazendas ásperas, Flores de vidro, Onde está o meu coração e O vento gira em torno de si, publicados pela 7Letras, Adeus, rio Doce (Bom Texto, 2006) e do livro de contos infantojuvenil Uma história dentro da outra e lendas do rio Doce (Zit, 2017).
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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