Decadência da ordem patriarcal

José Lins do Rego retira do memorialismo a matéria para sua ficção voltada a questões ligadas ao declínio das famílias, das pessoas e da sociedade
José Lins do Rego por Fabio Abreu
01/05/2023

Ficção e memorialismo
A literatura de José Lins do Rego está fortemente assinalada pela apresentação dos valores da ordem patriarcal em crise diante da modernização, ainda que sempre gradual e lenta, da sociedade brasileira. Além disso, suas obras são marcadas pela oralidade. Bom contador de histórias (assim como o foi Jorge Amado), o escritor paraibano retira do memorialismo a matéria para sua ficção voltada para questões ligadas à decadência das famílias, das pessoas e da sociedade.

De acordo com Luiz Costa Lima, a obra de José Lins vincula-se sobretudo à vertente regionalista da década de 1930, detendo-se “no nordeste úmido das várzeas do Paraíba, com os seus cabras do eito, os seus mestres carpinas, as suas negras serviçais para o trabalho e para o amor, os seus senhores de engenho”, bem como os coronéis, os fanáticos e os cangaceiros. Na enumeração do trecho citado, avultam os mais pobres, rareiam os de condição financeira privilegiada. Porém vale frisar que, ao se ocupar do universo dos que têm e dos que não têm, o escritor vai se postar, saudosamente, ao lado dos proprietários.

É por isso que a chave de compreensão do esfacelamento da organização patriarcal, tematizada em boa parte de seus romances, está no volume de memórias Meus verdes anos, publicado em 1956, um de seus últimos livros. Nesta obra, o neto de senhor de engenho empreende sua busca do tempo perdido, isto é, o tempo em que havia clareza entre os que detinham o poder e os que não o tinham. Sua ótica vai ser a do avô proprietário, é claro. Por intermédio da memória, José Lins recupera um mundo idílico e hierarquicamente estabelecido em que proprietários eram proprietários, escravos eram escravos, camumbembes eram camumbembes.

Hierarquia
A hierarquia da qual José Lins lembra com saudade no livro de memórias é a mesma que vai sobressair na sua produção literária. Em seus romances, esta hierarquia — que representa a mentalidade da classe dominante — se esboroa diante das mudanças que a Revolução de 30 veio estabelecer na sociedade brasileira como bem expressa o verso de Camões “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. De fato, as alterações na paisagem sociopolítica brasileira do decênio de 1930 trouxeram os ventos da decadência ao coronelismo, ao patriarcalismo, à oligarquia rural. Restou, portanto, a José Lins, recuperar na ficção, por meio da lembrança, uma época que não tinha mais condições de existir.

Esta recherche du temps perdu que marca a literatura de Lins do Rego é componente de magistral e polêmica obra de Gilberto Freyre Casa-grande e senzala (1933). O sociólogo era amigo de José Lins desde a década de 1920 e influenciou o escritor na interpretação da sociedade brasileira pelas lentes de um passado glorioso. Vale salientar que Freyre opôs-se aos intelectuais da Semana de Arte Moderna com o Manifesto Regionalista (1926), cujo cerne era a tradição. Segundo Emília Viotti da Costa, em Da monarquia à república, a epopeia de Casa-grande e senzala “revelaria a tradição senhorial de uma maneira simpática. Engajar-se-ia numa ‘proustiana’ busca do tempo perdido”. Sob influência do sociólogo pernambucano cujas ideias no manifesto e no livro valorizam o patriarcado açucareiro nordestino, o culto ao passado via memorialismo assoma na obra do paraibano.

Em A permanência do círculo, livro que discute a hierarquia no romance brasileiro desde José de Alencar, passando por alguns escritores do “romance de 30”, até chegar à Clarice Lispector, Roberto Reis acertadamente observa que as obras romanescas mais famosas de José Lins tentam “recuperar, ao menos imaginariamente, no espaço da ficção, a cena senhorial”. Este passado senhorial, da casa-grande, do autoritarismo, da repressão e da violência é o que se detecta nas páginas memorialísticas de Meus verdes anos e invade o terreno ficcional de alguns romances abordados aqui: Usina (1936), Pedra Bonita (1938), Água-mãe(1941) e Cangaceiros (1953).

No prefácio a seu volume de memórias, José Lins escreveu que nela procurava reter “‘os verdes anos’ que se foram no tempo, mas que ainda se fixam no escritor que tanto se alimentou de suas substâncias”. Estas palavras patenteiam que a interpretação de muitos de seus romances são fornecidas pelas pistas lançadas ao longo da autobiografia do autor. De fato, as memórias desta obra de feitio autobiográfico oferecem aos leitores nomes de pessoas que se transformaram em personagens (Antônio Silvino, Totônia, tia Maria, Lula de Holanda, Vitorino Carneiro da Cunha e outros mais), lugares onde viveu o escritor e que aparecem em seus romances, acontecimentos que vão receber uma demão ficcional e serão aproveitados nos romances.

A “arquitetura da memória” que marca Meus verdes anos — de acordo com o prefácio de Iranilson Buriti de Oliveira — pode ser estendida à nostalgia existente em Usina e também nas demais obras abarcadas por neste texto. A mesma arquitetura memorialística comparece em Pedra Bonita, Cangaceiros e Água-mãe de forma mais sutil.

Os dois volumes dedicados ao tema do cangaço (Pedra Bonita e Cangaceiros) são potencialmente de denúncia das mazelas sociais do semiárido nordestino. Água-mãe, por sua vez, detém-se na vida de três famílias do litoral do Rio de Janeiro: uma rica, a segunda pertencente às classes remediadas e a última composta de pessoas pobres. Aparentemente os três livros escapariam a uma estrutura vincada pela memória, mas há uma marca dissimulada de recuperação proustiana do passado nestas narrativas. Noutras palavras, o idílico mundo patriarcal que ruiu só fica em pé por intermédio das reminiscências. Do passado, a mais cara lembrança é a da ordem estabelecida, isto é, da hierarquia. Portanto é o traço hierárquico que determina que o mundo do cangaço em Pedra Bonita e Cangaceiros é o lugar dos humilhados e ofendidos. De modo análogo, em Água-mãe, a decadência e a destruição das famílias decorrem da relação desierarquizada estabelecida entre elas.

Silviano Santiago destaca, no ensaio Vale quanto pesa, que se encontra no volume homônimo, o cunho memorialista da ficção de vários escritores modernistas que acaba resultando em autobiografias. Entre os listados por Santiago que fizeram romances memorialistas e depois enveredaram pelas memórias propriamente ditas estão José Lins, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Murilo Mendes, Pedro Nava e mais alguns escritores. Roberto Reis amplia a relação de autores que escreveram romances e autobiografias: Manuel Bandeira, Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Erico Verissimo. Além disso, Reis salienta que a obra de José Lins é paradigmática “no que diz respeito à decadência e ao cunho memorialista”.

Romances da decadência
Pela ordem de publicação, Usina e Pedra Bonita pertencem ao chamado “romance de 30”. São obras vinculadas à vertente regionalista do escritor, respectivamente ligados a obras do “ciclo da cana-de-açúcar” e do “ciclo do cangaço”. No que concerne ao romance Água-mãe, trata-se de narrativa cujos acontecimentos ocorrem nas salinas de Cabo Frio, no Rio de Janeiro — local onde José Lins passou uma temporada como fiscal do imposto de consumo. Na década de 1950, figuram Cangaceiros, último romance do autor que se filia ao “ciclo do cangaço”, e o livro de memórias no qual o escritor como que reescreve por meio da lembrança o que está contido em seus textos de ficção.

As informações acima evidenciam algumas distinções entre os romances. No entanto não é o que sucede com todos eles. Usina encerra um ciclo proustiano do Nordeste açucareiro. No caso de Pedra Bonita, que se desdobra em Cangaceiros, existe uma relação de proximidade temática. Os dois livros vão focar a desgraçada família Vieira envolvida pela pobreza, misticismo e envolvimento com o cangaço.

A crise do mundo rural frente às mudanças promovidas pela industrialização está em Usina (1936). Na década de 1930, Graciliano Ramos já havia notado que os primeiros livros de José Lins expressavam “a decadência econômica da família rural do Nordeste”. Efetivamente a obra tematiza o fim de um tempo que dá lugar a outro, a um “tempo de usina, um complexo de produção industrial que demandava disciplina, ordenamento e impessoalidade”, conforme indica o prefácio de Mariana Chaguri.

Último romance do “ciclo da cana-de-açúcar”, Usina é dividido em duas partes: O retorno e Usina. A primeira se ocupa de Ricardo, personagem afrodescendente que já estava em O moleque Ricardo (1935). Em O retorno, a narrativa ocupa-se em mostrar que, depois de preso e ter passado por diversas dificuldades de inserção social, a personagem regressa ao lugar onde tinha vivido. A última parte concentra-se na queda do engenho Santa Rosa — transformado em usina Bom Jesus por dr. Juca, genro do coronel José Paulino — e metaforicamente representa o fim de uma ordem patriarcal assentada no latifúndio e no desmando.

Ricardo comparece na última obra do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” para atar os fios de um mundo que não tem mais condições de existir. Embora sua volta ao antigo engenho represente um deslocamento espacial, simbolicamente Ricardo busca recuperar um tempo que não pode ser recuperado. Em Uma história do romance de 30, Luís Bueno destaca que “na velha propriedade, que se moderniza nas mãos do tio Juca, o moleque [Ricardo] acaba praticamente desaparecendo para que a derrocada final do Santa Rosa possa ser narrada — as duas trajetórias, do menino e do engenho, encontrando-se na morte”. Estes comentários de Bueno reforçam a incompatibilidade entre o passado que Ricardo almeja encontrar no lugar onde viveu a infância e a modernização cujas engrenagens acabam devorando tudo e todos.

Em Usina, a modernização opõe-se aos valores da aristocracia rural. O tom da narrativa, portanto, visa a provocar saudade de uma época passada quando as relações entre donos de terra, escravos e trabalhadores do eito eram mediadas por uma hierarquia apoiada na violência e na forte presença da figura do proprietário para deixar evidente os lugares que cabiam aos que pertenciam às elites e aos que a estas elites se sujeitavam. A entrada das máquinas modernas põe em crise a pessoalidade. Logo é preciso reatar a personalidade forte do proprietário, a importância do clã, por meio da reminiscência de um passado distante e glorioso.

O foco de Pedra Bonita e Cangaceiros está nos desvalidos. Ambos os romances se alimentam de algumas vivências do escritor e familiares relatadas nas recordações de Meus verdes anos. Nesta obra, existem menções ao capitão Antônio Silvino, um cangaceiro que mantinha relações com o avô e a gente de José Lins. Também são narradas algumas ações do cangaceiro e seu grupo. Decerto, Antônio Silvino e os homens que o acompanhavam serviram como modelos para compor as personagens dos dois romances que fazem parte do “ciclo de cangaço, misticismo e seca”.

Em Pedra Bonita, existe certa simpatia na ótica adotada por José Lins para tratar do jovem Antônio Bento, sua vida na vila de Açu nas primeiras décadas do século 20, a proteção que tem de padre Amâncio e a angústia de ser desprezado no vilarejo por conta de ter nascido na famigerada Pedra Bonita, palco de uma tragédia real envolvendo fanáticos religiosos em 1838. Bento acaba enfim envolvido em evento semelhante quando retorna ao lugar de origem para reencontrar os pais e os irmãos.

Cangaço
Ao misticismo que marca a segunda parte de Pedra Bonita, acrescenta-se a temática do cangaço. Aparício, um dos irmãos de Bento, adere a um grupo de bandoleiros. No prefácio a este romance, Adriana Negreiros aponta que o cangaço, “para rapazes pobres e sem outra perspectiva que não a vida eternamente sofrida do sertão, constituía a melhor chance de ascensão social e econômica”. Em Cangaceiros, continuação de Pedra Bonita, é Domício, o outro irmão, que se liga ao banditismo, igualmente seduzido por uma existência que concilia aventuras, dinheiro e estupro de mulheres.

Xico Sá comenta na apresentação de Cangaceiros que “fica evidente o poder do Estado (nas tropas da segurança pública) e a força dos latifundiários representada pelos coronéis”. No meio destes dois núcleos de poder, estão os miseráveis que abraçam o cangaço supondo que vão representar uma forma de resistência à opressão. Como “cabras” só podem esperar a perseguição e a morte que as volantes policiais vão lhes mover.

Na realidade, ambos os romances apresentam uma ótica paternalista dos poderosos de plantão instalados em vilarejos, dos coronéis que acoitam cangaceiros, financiando-os, armando-os para perpetrarem crimes e vinganças. Noutras palavras, ainda que se julguem justiceiros, os pobres-diabos envolvidos no cangaço são meros bonecos manipulados pelos cordões dos que detêm o poder. Julgam-se livres, mas não passam de elementos das milícias à disposição dos ocupantes do poder. Supõem que exercem o poder pelo terror, porém localizam-se na base da hierarquia da ordem patriarcal.

Bernardo Buarque de Hollanda destaca na apresentação de Água-mãe o fato de o romance distinguir-se em relação às demais obras de José Lins. Uma das peculiaridades é a não tematização do Nordeste. A outra é que a narrativa não se inscreve nos ciclos “do cangaço” ou da “cana-de-açúcar”. A novidade, segundo o prefaciador, é que o livro “tenta retratar na ficção famílias pertencentes às três esferas da sociedade, das classes populares às classes remediadas e destas às classes altas do Rio de Janeiro da primeira metade do século 20”.

A leitura deste romance e de outros de José Lins evidencia, porém, que é processo comum em sua literatura o registro da relação entre famílias patrícias e outras socioeconomicamente menos favorecidas. É o padrão de compreensão da sociedade que o escritor tomou de Gilberto Freyre e emprega em todos os seus romances. Nesta maneira de enxergar as relações entre os que ocupam o poder e os que servem, José Lins avalia nostalgicamente que não existem embates, cada um tem consciência do posto que lhe cabe no processo hierárquico que as oligarquias supõem ser um traço de igualdade entre as pessoas.

Sem adentrar a atmosfera sobrenatural que caracteriza Água-mãe, importa verificar no romance que os riquíssimos Mafra e as famílias da remediada dona Mocinha, proprietária de algumas salinas, e do pobre cabo Candinho, pescador de camarão, acabam estabelecendo alguns liames que, obviamente, não são duradouros. Num país de fortes marcas patriarcais como o Brasil, o vínculo que existe entre ricos e pobres pressupõe dependência. Dependência pressupõe, por sua vez, hierarquia.

Em A casa azul, primeira parte de Água-mãe, existe um equilíbrio na abordagem que a narrativa faz das personagens e seus círculos familiares. Paira um ar de sentimentalismo na estruturação dos fatos destes oito capítulos iniciais. Na segunda e mais longa parte, Os Mafra, os membros das três famílias passam a coexistir umas com as outras na trama e enfim “todos são tragados pela frustração ou pela morte, como marionetes cujo dono fosse sádico ou estivesse bastante aborrecido”, como avalia Luiz Costa Lima. Noutra clave de leitura, alguns acontecimentos do romance — tais como o sentimento afetivo de duas das moças Mafra pelo jovem remediado Luís e a relação homoafetiva entre Lúcia e Helena Mafra — desestruturam a dependência, a hierarquia e retiram a pátina hipócrita que recobre a lógica da ordem patriarcal.

Cena fechada
O volume de memórias Meus verdes anos e os romances Usina, Pedra Bonita, Cangaceiros e Água-mãe têm em comum uma espécie de entrelaçamento feito de reminiscências de uma cena senhorial impossível de existir depois da Revolução de 30. José Lins emprega as lembranças “que os anos não trazem mais” tanto na urdidura de sua autobiografia quanto nas obras ficcionais. Como destacado ao longo desta resenha, texto autobiográfico e texto ficcional fundem-se e confundem-se na literatura dos escritores vinculados ao “romance de 30”.

A reencenação do mundo senhorial, qualificado por Roberto Reis como “fechado, autoritário, hierárquico, masculino e bastante repressivo”, só se torna possível ao escritor paraibano quando suas personagens se comportam de acordo com os valores expressos pela ordem patriarcal: poucos são os que exercem despoticamente a autoridade, muitos são os que obedecem sem contestar e com medo.

Na edênica cena senhorial de José Lins, o mundo, as pessoas, as coisas só são perfeitas se estiverem marcadas pelo signo da imutabilidade. Dito de outra forma: os ocupantes das camadas menos privilegiadas da sociedade têm lugar nas narrativas para dar mais lustre aos que representam, mesmo que decadente, a lógica patriarcal.

Usina
José Lins do Rego
Global
376 págs.

Pedra Bonita
José Lins do Rego
Global
320 págs.
Água-mãe
José Lins do Rego
Global
391 págs.
Cangaceiros
José Lins do Rego
Global
384 págs.
Meus verdes anos
José Lins do Rego
Global
224 págs.
José Lins do Rego
Nasceu no Engenho Corredor, em Pilar (Paraíba), em 1901, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1957. Formou-se em Direito, ligou-se ao grupo modernista do Nordeste e sofreu influências sobre a formação social brasileira do amigo Gilberto Freyre. Em Maceió, fez parte do grupo de Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Hollanda, Valdemar Cavalcanti, Carlos Paurílio e Aluísio Branco. Boa parte de sua obra tem cunho regionalista, voltando-se para os problemas da região nordestina, tematizados nos romances do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” Menino do engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e nos de temática do cangaço Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953). Menino do engenho, Água-mãe (1941) Eurídice (1947) receberam respectivamente os prêmios Graça Aranha, Felipe de Oliveira e Fábio Prado. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

Rascunho