Folhagens do inconsciente

O carinho a algumas plantas feias que ainda sobrevivem às intempéries na varanda numa cidade feita de concreto e carros
Ilustração: Carina S. Santos
24/05/2024

Sonhei esta noite que percorria a calçada do bairro, entre casinhas e jardins com plantas e árvores, e à medida que caminhava a folhagem crescia mais vívida, ramos e folhas rajadas de espécies diferentes surgiam à frente do meu rosto, conforme eu avançava, e senti com alegria, no sonho, que a natureza me fazia bem.

Moro num apartamento de dois quartos, com uma pequena varanda, numa cidade que se estende quilômetros à nossa volta. Na varanda, o sol bate seco e forte desde as onze da manhã. À tarde, estar na varanda é enfrentar um deserto: quente e árido. Certos dias, venta forte.

Encomendei uma floreira para tentar cultivar algumas plantas, e, por causa do vento, precisei amarrá-la ao parapeito. Com abraçadeiras plásticas, prendi à floreira uns vasos que comprei na feira, seguindo a indicação da vendedora (Que plantas aguentam sol e ventania?). O arbusto mais bonito — de folhas finas e arroxeadas — resistiu poucas semanas. Sobreviveram só duas espécies: uma pequena muda de jade, e um vaso de miniespada de São Jorge. Não fez sucesso na família: “Parece vaso de cemitério”, reclamaram.

Tenho cuidado e olhado os pequenos vasinhos de cemitério há meses. As plantas cresceram; dividi as mudas pelos vasos sobressalentes das outras espécies que não aguentaram. Olho para as folhas rígidas e corajosas e tento enxergar beleza nelas. Um olhar de carinho. Estão aqui apenas porque sobreviveram — feiosas, pouco amadas, como pequenas cassandras que ninguém quer por perto porque trazem notícias ruins. Sobre o clima? Sobre nós?

Quando sigo pela rua, a caminho do trabalho, vejo poucas varandas verdejantes nos outros prédios — microsselvas na fachada — e penso no que há de diferente entre esses apartamentos e o meu. Moram ali aposentados, que têm tempo de conhecer as plantas, e escolhê-las, regá-las, borrifá-las, podá-las, afofar a terra como merecem?

Que pessoas têm tempo de cuidar de plantas? Indivíduos sem cônjuge, sem emprego? Como conseguem juntar tempo livre? Quanto a mim, sei que não consigo. Se o trabalho acabou, a família está em paz, tenho sim minhas horas vagas, e faço delas o que faço agora: estas linhas. Escrever sobre a nostalgia das plantas que não cultivo. Narrar um sonho sobre a alegria de caminhar entre as plantas do inconsciente — ao escrever, me fecho no apartamento; não saio e não caminho entre as plantas reais.

Mês passado, li And a dog called Fig: solitude, connection, the writing life, de Helen Humphreys. A escritora mora numa pequena cidade do Canadá, perto do lago Ontário. O livro de memórias fala da filhote Fig, adotada no inverno; Humphreys se devota à energia de um filhote, sendo uma mulher madura; caminha na natureza com a cachorra, e relembra histórias de amor entre escritores e seus cães.

Li o livro e fiquei semanas namorando a ideia de adotar um cachorrinho. Um vizsla — cão de caça húngaro, como Fig — seria impraticável. Mas daria conta de um pug miniatura. Imaginei a cachorrinha, escolhi seu nome. Pesquisei utensílios e pet shops na região, de que precisaria. A cachorrinha imaginária enterneceu meu coração.

Assim como as plantinhas de cemitério, na varanda, me enternecem. O mundo natural — que floresce em meus sonhos, e nos quintais das casinhas da Lapa, e vejo ao abrir a janela, entre um e outro parágrafo.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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