Rogério, Zezéio, Zezé, Zeca, Zé, você está partindo, meu irmão. Sempre achei curiosa a forma como nos referimos à morte. Partir para onde? Olho você assim magrinho, assustadoramente magro, os olhos parados e baços, largado no meio da cama, emoldurado por lençóis e travesseiros, e não reconheço quem vejo. Não sei para onde iria do jeito triste e sem forças que está. Não enxergo, querido, a menor condição de travessias.
Lembro Vinicius de Moraes e recupero, em fragmentos boiando no mar de minhas lágrimas, as noites da infância e juventude. O quarto, camas paralelas, abajures acessos, avançado das horas, nós dois lendo. Talvez pelo fato de a leitura ter sempre nos unido. No começo foi Laura Ingalls Wilder, escritora americana reacionária. Mas como não nos preocupávamos ainda com política, queríamos mesmo era viver as aventuras de Laura, Mary, Almanzo, o cachorrinho Jack, lá na casa da floresta, da campina, às margens da lagoa prateada, naqueles anos felizes. A gente se entusiasmava, varava a noite, e ficava conversando, sonhando com o universo pioneiro do oeste americano.
Depois foram tantos: Mark Twain, Jack London, Viriato Correia, Daniel Defoe, Francisco Marins, Alexandre Dumas. A ilha do tesouro, Moby Dick, Vinte mil léguas submarinas. E mais tarde: William Faulkner, Dostoiévski, Jane Austen, Flaubert, Balzac, Thomas Mann, Tolstói. Nossa casa cheia de livros.
E então comecei a escrever. Tímido, sem coragem de mostrar para ninguém meus textos, recorri a você, maninho. Vieram as sugestões, revisões, minhas vírgulas obedeciam a padrões sem sentido, apareciam invariavelmente mal posicionadas. A sua paciência consertava meus tropeços, aos poucos fui aprendendo e ficando menos dependente. Tenho certeza de que sem seu apoio não teria nem começado a publicar. Tive a felicidade de ter um editor disponível. Você, meu Zequinha.
Ontem mamãe quis ver seu estado. Como negar? Chegou em seu passo miúdo, trêmula, bamba, afinal noventa e quatro anos pesam. Sentou-se sobre o cobertor, bem pertinho do filho, beijou-lhe a testa e ficou fazendo carinho naquelas mãos descarnadas. E eu vendo aquilo tudo, engasgado, morrendo de medo. É que me assusta não saber para onde você vai. Se é que vamos para algum lugar depois. Não acredito, nunca acreditamos. Nossa morada paterna sempre foi um lar de descrenças. Aprendemos desde muito novinhos a inexistência de Deus, céu, inferno. Até mesmo Papai Noel foi rapidamente negado. Crescer sem fé foi natural, mais lógico, mas hoje pesa. Seria bom ter alguma certeza. Gostaria de pensar no meu Zeca em um lugar bacana, cheio de bichos, os animaizinhos de toda a vida: gatos, cachorros, peixes, porquinhos da Índia, pássaros de todos os tipos e tamanhos, tartarugas, e até um papagaio. Aquele que tivemos que dar pois não gostava do papai e avançava nele. E sabendo de seu amor, tenho pensado em jogar suas cinzas no Zoológico. Que tal?
Com quem vou falar de literatura, Zezéio? Sempre vi na leitura nossa religião. Quando conversávamos sobre as obras que fizeram nossa vida, de alguma forma estávamos rezando. E como eu tenho lido ultimamente, Rogério. São os únicos momentos capazes de me afastar da perspectiva de perder você, meu Rogerinho. Desgraça, dor, carne viva. Talvez por todo esse amor que vai virar memória. Por essa foto aqui na escrivaninha onde você me olha rindo. Bonito, sadio. Muito difícil entender. De repente, não terei irmão.