O túmulo do Quixote

No meio da sala, o baú que escondia um tesouro repleto de aventuras
Ilustração: Bruno Schier
01/05/2024

Minha mãe tinha poucas amigas. Uma delas, mulher magra e calada que vivia em um prédio vizinho, era Maria Pires. Havia uma distante e obscura relação de parentesco. Não sei sobre o que as duas conversavam, pois era sempre em voz baixa. Quando menino, cheguei a cogitar que fossem cúmplices de alguma maldade, talvez de um crime.

Aos 10 anos de idade, eu era um menino fantasioso e suscetível, que tinha grandes dificuldades de separar meus devaneios infantis da dolorosa realidade. Talvez todos os garotos de 10 anos sejam assim. Meu pai, porém, insistia em um diagnóstico ameaçador. Repetia: “Esse menino sofre dos nervos”.

Não sei de onde ele tirou essa conclusão, já que fui um garoto silencioso, que quase nunca expunha meus sentimentos. Talvez fosse justamente a ausência dos sentimentos o que o espantava. Acontece que meu pai era, ele também, carrancudo e evasivo. Talvez visse em mim o que carregava dentro dele.

Cronistas estão sempre a se perder, e eu já me perdi. Não me perdesse tanto, e não ousaria me apresentar como cronista. Agarro-me, de volta, à lembrança de Maria Pires, a astuciosa amiga de minha mãe. Era uma mulher tão fria que eu não sabia como tratá-la. “Dê mais atenção a dona Maria Pires”, minha mãe pedia. Eu fugia. “Eu não a entendo e, por isso, não consigo”, eu explicava.

Até que um dia, Maria Pires nos convidou para um lanche em sua casa. Minha mãe usou um perfume francês, que guardava para festas. Era um apartamento pequeno e ordenado com rigor, lembrava uma vitrine. Assim que entrei, senti uma forte inquietação. Temia esbarrar em algum objeto e ser repreendido. Acomodei-me ao lado de minha mãe em um sofá. Maria Pires nos serviu um bolo azulado, que parecia pintado com tinta de parede. O gosto era de cal.

Diante do sofá, havia um grande baú de madeira, trancado a cadeado. Era comprido e estreito, parecia um caixão. Enquanto Maria Pires e minha mãe conversavam, passei a especular a respeito do que nele se guardava. Talvez um corpo, cogitei. Não que ela parecesse uma assassina, ao contrário, era uma senhora serena e frágil. Não teria vigor para cometer um crime: além de muito magra, arrastava uma das pernas.

Aproveitei que minha mãe elogiou o estilo antigo do baú, tomei coragem e perguntei: “O que a senhora guarda dentro dele?”. Minha mãe me repreendeu, mas Maria Pires lhe disse que, na infância, a curiosidade é uma qualidade. Na vida adulta — como eu a vivo hoje — transforma-se em um vício. “É uma qualidade própria dos poetas”, ela acrescentou. “Mas, também, dos detetives, que em geral não prestam”, minha mãe a corrigiu.

A amiga de mãe se levantou, foi até uma gaveta e voltou com uma chave. Custou a abrir o cadeado, parecia que havia muito ele não era aberto. Ergueu, enfim, a tampa e pediu que eu me aproximasse. Dentro do baú, em vez de um cadáver, encontrei um punhado de livros. Tirou alguns deles ao acaso e me entregou. “Se quiser, pode ficar com eles, meu querido.”

Sentou-se de novo ao lado de minha mãe e confidenciou: “Meus irmãos me proibiram de ler”. Quando enviuvou, descobriu que só tinha algum alívio quando lia. Seus irmãos, porém, incapazes de descer além da superfície das coisas, passaram a atribuir a depressão justamente aos livros. Foi internada por algum tempo em uma clínica de repouso. Quando retornou para casa, todos os livros tinham desaparecido.

Voltou a comprar livros, e a ler às escondidas, mas tomava o cuidado de trancar todos eles no baú da sala. Quando suspeitaram de que ela voltara a ler, os irmãos passaram a controlar seu dinheiro. Consolava-se relendo livros velhos. Passou a usar o cadeado. Quando os irmãos perguntavam o que havia no baú, ela dizia: “São coisas do Osvaldo, que guardo por sentimentalismo”.

Quando Maria Pires faleceu, em uma UTI, minha mãe deu um jeito de ser a primeira a entrar no apartamento. Argumentou que limparia a cozinha, para que não proliferassem baratas. Foi à gaveta, pegou a chave e abriu o baú. Eu a acompanhei em sua visita secreta. Dentro do baú, só havia um livro: o Quixote.

Minha mãe me pediu ajuda para escondê-lo — como se ele fosse a prova mais grave de um crime. Pedi para ficar com ele. E é nele que releio agora, pela terceira vez, o romance de Miguel de Cervantes. De vez em quando, ainda hoje, ergo os olhos das páginas e penso: “Obrigado, dona Maria Pires”.

Perguntei-me, muitas vezes, que castigo lhe seria destinado caso a família descobrisse, envolto em trevas como um cadáver, o velho exemplar do Quixote. Provavelmente, Maria Pires seria internada de novo. Talvez a levassem para um asilo de idosos. Uma hipótese mais radical e assustadora me veio: “Talvez a matassem”.

Lembrei-me, então, do Barba Azul, o personagem de Charles Perrault, que matava suas esposas curiosas. Elas eram proibidas de entrar em certo quarto. Quando entravam, deparavam com os corpos de outras mulheres que, no passado, cometeram a mesma violação. Teria Maria Pires sido vítima da mesma vingança?

A mente do cronista não sossega, está sempre a derrapar e a se revirar. No fim de sua vida, eu visitava minha mãe para ler, em voz alta, contos de fadas. Só eles a tranquilizavam. Por várias vezes, só para dar mais realismo ao que eu lia, trocava o nome da princesa, ou da rainha, para Maria Pires. Era uma homenagem, e também uma maneira de minha mãe não se sentir tão sozinha.

Certa noite, comecei a ler o Barba Azul, de Perrault. Estava na metade do relato, quando minha mãe me interrompeu. “Por favor, meu filho, pare de ler esse conto.” Eu a atendi. Com a expressão mais aliviada, ela me fez outro pedido: “Nunca mais me leia nada. Vamos esquecer dos livros”. Decepcionado, respeitei seu desejo.

Às vezes, para distraí-la, eu contava histórias falsas de Maria Pires. Histórias que eu inventava na hora, sem nenhum pudor e nenhum respeito pela memória da amiga, só para consolar minha mãe. Um dia, depois de ouvir uma dessas histórias, minha mãe me declarou: “A Maria Pires foi uma grande mulher”. E foi assim, como uma grande mulher, e não uma leitora secreta, que Maria Pires entrou para a história da família.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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