Pele-poema

Em "pesado demais para a ventania", Ricardo Aleixo performa um diferente legado para a poesia contemporânea
Ricardo Aleixo, autor de “pesado demais para a ventania”
30/07/2019

Quando Hélio Oiticica desprende as formas geométricas e coloridas das paredes da arte moderna, revelando com isso que a experiência poética encontraria no tempo-espaço da vida do espectador sua nova terceira dimensão (refiro-me, claro, à obra experimental Grande núcleo), ajuda não apenas a popularizar a performance como poética de um tempo posterior ao modernismo, ele esgarça também a intuição que os modernistas já haviam tido, a de que não há possibilidade de se reduzir uma estrutura lírica para a arte daquele e deste tempo.

A pesquisa do artista carioca vai ganhar organismo poético com os parangolés que traziam ao centro da experiência toda uma gesticulação e presença das pessoas pobres e pretas da periferia do Rio de Janeiro, ora pelo capoeira, ora pela porta-bandeira, ora pelas maneiras de se vestir das mulheres das favelas. Sua poética parecia dizer: não basta libertar as formas coloridas das paredes e fazê-las habitar nosso próprio tempo-espaço, é preciso dar movimento a elas, é preciso fazê-las dançar. Assim, o ritmo das formas seria ditado pelos gestos de quem as vestisse (no caso, quem vestisse os parangolés).

Tributárias de uma cena feito essa, provocada não apenas por Oiticica, mas também tensionada pela estética visual concretista, ou pela eloquência da poesia marginal — sem perder de vista também que nunca deixamos de ter poetas escrevendo sonetos —, vemos hoje multiplicidades de poéticas das quais Ricardo Aleixo, sem dúvida, é um importante articulador.

Não diria se tratar de um representante porque já aprendemos com Agamben que o contemporâneo não é aquele que confirma o tempo, mas sim aquele que desestabiliza os limites do mesmo, ou ainda, é aquele que não coincide. Poeta, performer, curador e artista em multimídias, Ricardo Aleixo (se) articula na região limítrofe das diferentes linguagens que toca com sua poesia. Ele toma posse desses limites menos para denunciá-los como insuficientes do que para fazê-los dizer mais no transbordamento das linguagens e dos corpos.

Seus poemas são experiências de corpos artísticos, como tentou entender Merleau-Ponty, que teorizou sobre o corpo comparando-o às obras de arte e não aos objetos físicos. Eles, os poemas de Aleixo, encarnam mais do que a lição de Oiticica, embora dela seja também um dos pontos de partida. Eles dão pernas, braços, sexos, bocas e asas para as palavras. Os poemas de Ricardo Aleixo quase conseguem falar silêncios gritados e berros sussurrados.

Parte significativa dessa trajetória poética pode ser lida agora em pesado demais para a ventania.

Linhas de força
A opção do poeta nessa obra foi pela organização em eixos temáticos, ou linhas de força, conforme explica em nota na abertura do livro. São seis as linhas. Em Desde e para sempre a língua brasileira dança em par com matrizes africanas, mais potencialmente com o candomblé e seus sensoriais orixás, e também com a África e o Brasil que vêm encarnados na matriz de sentido que este poeta nascido em Belo Horizonte é. E entre esses signos todos, vozes como as de sua mãe trazem mais desses dois países que Aleixo amplia para nós por meio de sua própria fala provocativamente elegante. É também nesta linha de força do livro que o poeta acena com a cabeça, sorriso nos lábios, para poetas como Drummond e Cabral de Melo Neto:
[…]
                feito: a mudez
              da pedra que me

                      espelha de dentro
                            do seu sono
                          de pedra
         […]

Do poeta de Itabira parece ficar esse sempre andar em estrada pedregosa, conforme menção explícita no poema Música mesmo, quando ele se apropria de palavras de Drummond para compor dois versos: “palmilhasse/ vagamente”. Poema esse que homenageia outro artista caminhante de Minas, Milton Nascimento.

Do poeta pernambucano, Aleixo parece querer que persista uma espessura de linguagem, uma linguagem que “espelha de dentro”. Porém, diferente de Cabral, ele não ensina o leitor a conviver dentro da espessura da linguagem, como vemos no Cão sem plumas de João Cabral — obra-prima que, na esteira de Miró, reensina o leitor a ver linguagens. No caso do poeta mineiro contemporâneo, essa espessura se expande em nós e os poemas, com suas vozes, imagens e palavras com asas vêm fazer eco dentro da gente. (Seria esse o espelho a refletir de dentro?)

O cão e o poeta, no caso de pesado demais para a ventania, caminham juntos pela rua. Não há o poeta observador-criador-erudito que percebe a miséria do cão-rio-homem como se ele próprio — e nós, leitores — não fosse da mesma carne dessa miséria. E mais, no poema de Ricardo Aleixo, o poeta hesita sobre o artifício que inventa. Ele não tem total certeza de ser o criador do cão e da rua e com isso parece levar a cabo uma sugestão não executada por Cabral de Melo Neto: “Viver/ é ir entre o que vive”.

Vamos às palavras de Aleixo:

Convivo muito bem com os cães da rua
[…]
[a rua]
me obriga a distinguir, nela, o que é vida
real do que será, quem sabe, um tardo
sinal do quão são irreais o cão e a rua
[…]

Isso aumenta a dimensão ética dessa importante voz poética contemporânea. É como quem diz: hoje, o poeta não sabe mais do rio ou do cão do que os próprios rios e cães (que parece ter sido a lição de João Cabral no livro seguinte, em que a voz do poema é a do próprio rio).

Mas voltemos às linhas de força de pesado demais para a ventania. Outros, o mesmo nos permite ler mais uma dimensão ética da poesia de Ricardo Aleixo, uma dimensão onde o outro nada mais pode ser do que a fissura de nós mesmos, bem como o que somos, em nossas individualidades, também está repleto dos hiatos do outros e de seus modos de serem, ou melhor, dos modos de sermos. Interessa ao poeta “o mundo como nunca/ o havíamos// visto antes”.

Mesmo conscientes de que muitas vezes há no antagonista uma ganância fétida, “conheço vocês/ pelo cheiro […] por seu amor/ ao dinheiro”, não se pode escapar ao fenômeno de existir com o outro, ou melhor, entre os outros, “no intervalo da transformação/ da coisa clara em coisa escura, da escura/ em/ clara”.

E é nessa mesma linha de força do livro que nos deparamos com algo mais experimental no que diz respeito à poesia visual de Aleixo. Uma outra proposição ética e estética para com a linguagem que entra em estado de tensão com o próprio objeto livro, o que conota o devir salto do poema para a terceira dimensão contemporânea, para onde a poesia se encarna — na vida.

Poemas visuais também ocorrem na parte seguinte de pesado demais para a ventania, a que se chamou de Ter escrito ainda não existe. Sob este título poeticamente ambíguo, em que podemos ler que o que não existe é o ‘ainda’, ou que o que ainda não existe é ter escrito, sugestão de incessante movimento, aparece o poema-ensaio poemanto. Nele, muitos dribles contra chaves de leitura são tentados, por exemplo, o de ser lido apenas à luz dos parangolés de Oiticica. Como se isso fosse preciso. O poemanto de Aleixo não dança feito capoeira. Se oferece feito prosa ou pedagogia poética. Seu ritmo é o da pele que ainda não o habita. Sua música é a dos corpos que ocupam o hiato… a fissura do viver entre. Seu poema-pele visa aquele instante em que parecemos saber o que está acontecendo, embora nunca o explicaremos, pois trata-se de um “elogio do excesso”.

A palavra “poemanto” rima com uma palavra que não aparece no poema, mas pode ser uma chave de leitura para o livro inteiro: “banto”. Um conjunto de línguas africanas que se caracterizam por terem suas flexões em prefixos e não em sufixos, como em brasileiro. Porém, como desde o início percebemos que as palavras com asas de Aleixo tendem antes a ampliar do que fixar as linguagens, africana e brasileira, podemos pensar que na carne dos poemas de pesado demais para a ventania está a impossibilidade de sufixos e prefixos, dado que nada pode ser fixo na linguagem (brasileira ou africana), e com isso sua poética estaria justamente neste fazer falar que é uma pele preta com tintas brancas onde nada pode ser fixado nem hierarquizado. Poema e manto não tencionam hierarquia linguística, pelo contrário, ambas as palavras, quando encarnadas uma na outra, só faz aumentar o devir da outra; o devir pele do poema, o devir poema da pele.

Essa chave vem mostrar que as demais linhas de forças do livro, O coração, meu limite, Multidão nenhuma e Queridos dias difíceis já estavam acontecendo nas linhas anteriores, pois a impossibilidade de hierarquizar em linguagens (brasileira-africana, corpo-palavra, livro-performance) seus versos, bem como a dificuldade de organizá-los em cronologia (sugestão do próprio autor), revela, num extremo, que as linhas de força estiveram elas também sempre juntas e que a provocação ética e estética dessa literatura é nos fazer sentir que a poesia simplesmente está e que nossas peles é que talvez estejam demasiadamente encouraçadas para a vivência no afeto.

pesado demais para a ventania
Ricardo Aleixo
Todavia
195 págs.
Ricardo Aleixo
Nasceu em Belo Horizonte (1960) e se destaca como um dos principais escritores e artistas da cena poética contemporânea do Brasil. Iniciou sua carreira como poeta em 1992. É também músico, artista multimídia, curador de arte e editor de revista. Faz performances no Brasil e exterior.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho