🔓 Quão caro foi o açúcar?

Publicada pela primeira vez em 1987, a obra de Cynthia McLeod tornou-se referência incontornável da literatura surinamesa
Quão caro foi o açúcar?
Cynthia McLeod
Trad.: Telma Viana Kotzebue
Pinard
392 págs.
01/10/2025

Publicada pela primeira vez em 1987, a obra de Cynthia McLeod tornou-se referência incontornável da literatura surinamesa e um marco na representação ficcional da escravidão no Caribe. Em Quão caro foi o açúcar?, a autora lança um olhar crítico sobre a sociedade colonial do século 18, reconstituindo a vida em torno das plantações de cana-de-açúcar, onde o luxo e o poder de uma pequena elite branca dependiam da exploração brutal de milhares de homens e mulheres escravizados.

A narrativa acompanha duas jovens — Sarith e Elza — que pertencem à classe dominante. Sarith, filha de um rico comerciante judeu, encarna a arrogância, o preconceito e a crueldade típicos de sua camada social. Elza, sua meia-irmã, é descrita como mais sensível e crítica, mas ainda presa ao círculo de privilégios coloniais. Ao redor delas, a trama dá voz também às pessoas escravizadas, que sustentam a riqueza da colônia ao preço de vidas sacrificadas. Ao entrelaçar essas perspectivas, McLeod constrói um painel vívido das tensões raciais e de classe que estruturavam a vida no Suriname do período.

Mais do que romance histórico, o livro funciona como documento literário de denúncia. A autora, formada em História e dedicada à pesquisa sobre o passado do Suriname, utiliza a ficção como instrumento de memória coletiva. Sua escrita não busca apenas emocionar ou entreter, mas confrontar o leitor com as raízes de uma violência que moldou sociedades inteiras e cujos efeitos ainda ecoam. Ao detalhar o cotidiano das plantações, os rituais de poder, os castigos e as estratégias de resistência, McLeod recupera um capítulo silenciado da história caribenha, frequentemente esquecido ou reduzido a notas de rodapé em narrativas centradas na Europa.

A publicação em português amplia o alcance desse projeto de resgate histórico. Ao lado da tradução precisa, o romance permite ao leitor brasileiro confrontar-se com uma experiência que, embora geograficamente distinta, dialoga diretamente com a formação do Brasil. As semelhanças entre os sistemas escravistas — baseados no trabalho forçado, na violência cotidiana e na lógica mercantil da cana-de-açúcar — aproximam as trajetórias do Suriname e do Brasil, revelando um passado comum de opressão e desigualdade. Ler Quão caro foi o açúcar? significa, assim, ampliar o entendimento sobre a dimensão transnacional da escravidão nas Américas.

Outro aspecto relevante da obra é a escolha do foco narrativo. Ao privilegiar as vozes femininas e expor as contradições das mulheres da elite colonial, McLeod não só denuncia a violência contra os escravizados, mas também evidencia a cumplicidade e as ambiguidades do papel feminino nesse sistema. Sarith, com sua frieza calculista, encarna a perpetuação da opressão. Elza, embora mais simpática às injustiças, mostra como é difícil escapar da engrenagem social que garante privilégios. Essa tensão entre acomodação e resistência confere densidade psicológica às personagens e impede leituras simplistas de “vilãs” e “heroínas”.

O título do romance — uma pergunta que é também acusação — reforça o caráter de denúncia: “quão caro foi o açúcar?” não se refere ao preço em moedas ou contratos, mas ao custo humano incalculável que sustentou o comércio atlântico. Cada grão adoçando as mesas europeias carregava o peso de corpos violentados, famílias desfeitas, culturas sufocadas. A força do livro está em traduzir esse custo em histórias particulares, permitindo que o leitor perceba a dor por meio de rostos e vozes concretas.

A autora, filha de Johan Ferrier, primeiro presidente do Suriname independente, nasceu em 1936 e dedicou grande parte de sua vida a recuperar o passado de seu país. Com Quão caro foi o açúcar?, conquistou um público amplo e abriu caminho para que a literatura surinamesa fosse reconhecida além de suas fronteiras. Sua obra, traduzida em diversos idiomas, já foi adaptada para cinema, ampliando ainda mais o impacto de sua denúncia. O romance permanece como leitura fundamental para quem deseja compreender não apenas a história do Suriname, mas também os mecanismos universais da exploração colonial.

Em um tempo em que a memória da escravidão ainda é disputada e, por vezes, negada, Quão caro foi o açúcar? torna-se leitura urgente. Ao revisitar o passado com rigor e imaginação literária, Cynthia McLeod questiona o presente e interpela o futuro. O romance lembra que não é possível compreender plenamente as desigualdades atuais sem encarar a brutalidade que as originou. Ler esse livro é, portanto, mais do que um exercício de erudição: é um gesto de responsabilidade histórica, um convite a reconhecer as cicatrizes deixadas pela escravidão e a refletir sobre como elas continuam a moldar nossas sociedades.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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