Em tempos de velocidade e dispersão, Pensar com as mãos é um convite à lentidão, à escuta e à observação atenta do ato de escrever. O livro reúne ensaios breves em que Marília Garcia, reconhecida por sua poesia inventiva e rigorosa, reflete sobre o próprio ofício e sobre a arte do verso. São textos que nasceram ao longo de mais de uma década e formam um mosaico de perguntas — mais interessado em pensar do que em concluir.
O título é uma chave de leitura. Pensar com as mãos significa devolver à escrita sua dimensão física, manual, quase artesanal. A autora propõe que o pensamento acontece não apenas na mente, mas também no corpo: nas hesitações, nos riscos e nas marcas do gesto que escreve. Essa ideia, que atravessa toda a obra, desloca o ato de pensar para o território do fazer — e, por isso, transforma o ensaio em continuação natural da poesia.
Cada texto é um ensaio no sentido mais livre e vital do termo: tentativa, experimento, esboço. Garcia reflete sobre palavras “gastas”, como coração, e pergunta se ainda é possível empregá-las sem ingenuidade. Examina traduções de Baudelaire, aproxima poesia de outros gêneros, comenta procedimentos de autores contemporâneos e discute o desafio de escrever contra a própria poética. O leitor acompanha uma mente curiosa e inquieta que desmonta seus próprios mecanismos de criação — e, ao fazê-lo, revela que a poesia é também uma forma de pensamento.
O livro confirma a afinidade entre a poeta e a ensaísta, duas faces de uma mesma voz. Como observa o poeta Fabrício Corsaletti, na contracapa, “em muitos de seus poemas instigantes e refinados, Marília Garcia é uma poeta-ensaísta que cerca o seu tema com indagações sem fim. Neste Pensar com as mãos, revela-se uma outra (mesma?) face da autora: a da ensaísta tout court”. Corsaletti destaca ainda o olhar “perspicaz, bem-informado e guiado por uma curiosidade irresistível”, e lembra que ler esses textos “é ver a poeta-leitora em ação, com a mão na massa”. Essa leitura de um par da autora — um poeta que reconhece na obra de outra poeta a continuidade da reflexão — ajuda a situar o livro num lugar raro: o de pensar a poesia a partir de dentro, sem perder o frescor da criação.
Entre citações, fragmentos, lembranças e imagens, Pensar com as mãos constrói uma poética do inacabado. A autora escreve como quem caminha — e cada ensaio é uma parada provisória, um lampejo de compreensão. Ao contrário dos tratados acadêmicos, o livro não busca definir nem encerrar temas: prefere abri-los, deixar que a dúvida se torne motor do pensamento. O gesto de escrever é também o de escavar, tatear, mover o sentido de um lugar a outro.
Esse modo de ensaiar o mundo aproxima o livro de tradições literárias que fazem do fragmento e da incerteza uma ética da criação. Marília Garcia não escreve “sobre” poesia — escreve a partir dela, como quem pensa por meio daquilo que ama. Assim, o ensaio se torna um espaço de liberdade e invenção, onde a reflexão é atravessada por ritmo, voz e emoção. A prosa clara e sensível abre caminhos para quem se interessa pela poesia contemporânea, pela tradução ou simplesmente pela linguagem como espaço de descoberta.
No verso de Godard que dá título ao livro — “a verdadeira condição humana é a de pensar com as mãos” — está a síntese do projeto: pensar é tocar, manipular, transformar. Marília Garcia faz da escrita um instrumento para compreender o mundo e, ao mesmo tempo, para reinventá-lo. Pensar com as mãos é, portanto, um livro sobre poesia, mas também sobre atenção, dúvida e escuta. Um exercício de lucidez e delicadeza que reafirma o poder da literatura de iluminar o invisível — e de devolver ao leitor o prazer de ver o pensamento acontecer.